Sobre a Centelha
Estava em um campo verde, como em uma encosta. Lá embaixo, o mar. A sensação primeira que teve foi a de um lusitano louvando seu porto natural. Sentou na encosta, a balançar as pernas para lá e para cá. Ficou a contemplar o mar, aquela imensidão azul refletindo o céu. Era tardizinha e não queria voltar. Respirava fundo, fechava os olhos e sentia o corpo inteiro ser inundado por sutis choques elétricos. A cada inspiração sentia o pulmão pulsar como um organismo próprio, separado do dele, a auxiliar todo o seu corpo - um verdadeiro pranayama. Não, não queria sair dali. Projetou-se em sua mente o sentido de escapismo que permeou toda a infância, adolescência, que ainda permeia a maioridade...
As vibrações aumentavam. Eu era todo uma consciência se desprendendo de qualquer microcosmo. Eu me unia ao campo, aos céus, aos mares. O ar que eu respirava era eu em mim mesmo. Sentia-me expandido, reflexo de mim-mesmo. A segurança, o sopro ao ouvido, de um lado e de outro, "vá, una-se, permita-se", a felicidade - não aquela efêmera, não aquela que acompanha uma dúvida de estar realmente feliz - inundou o espaço-tempo. Eu era todo campo, céus, mares, ar, sopros, felicidade. Tudo em mim, de mim.
Aproximou-se de mim Vovó Filomena, com aquele andar sereno e o sorriso sem dentes. Vestia um manto de retalhos e me trazia café. Falou-me sobre o maior Mestre - a Vida -, sobre a importância em não ser piedoso consigo mesmo no que diz respeito aos defeitos. "Zifinha, nunca apague a sua fagulha". Eu sorri e agradeci. Tomei o café e ela se despediu. Saudei A Criação, saudei Nagô, saudei o amor que sentia em mim - saudei a necessidade em amar.
De longe desciam dois arcanjos, um moreno de cabelos encaracolados e olhos mel, outro loiro de olhos verde-esmeralda. Não me falaram nada, só olhavam para mim. Senti-me inteiramente protegido. Senti a energia de São Miguel Arcanjo, a força, o otimismo e a Vontade. Um velho monge, talvez Franciscano, talvez não, tocou-me no ombro e sorriu. Seus dentes eram brancos e o sorriso era desafiador. Senti, naquele momento, que já o conhecia. Falou-me sobre sincretismo e sincronia, sobre a razão e a emoção, sobre a necessidade em buscar o conhecimento. Assegurou-me que estava sempre comigo, guiando-me pelas veredas do conhecimento. "Irmão, o nosso trabalho somente começou. Há muito o que fazer". Que amor e que carinho vinham daquele olhar! "Não perguntarei o seu nome", pensei, "Não se ligue em nomes. Quando quiser me agradecer, eleve a sua consciência a mim", ele adiantou. Foi-se com os arcanjos.
Levantei-me para o encontro com a C., decidido a contar toda a experiência, a primeira experiência, a primeira e segura experiência. Ouvi um lindo canto vindo debaixo da encosta. Vi Mamãe na Água, vi Pai Preto e vi Caboclo. Fui abraçá-los, como em um reencontro. Caboclo bateu no peito e bradou "Salve Zambi meu fio, Salve Oxalá, Salve Iemanjá, Salve seu Anjo da Guarda, Salve Nossa Senhora do Desterro! Salve São Miguel Arcanjo e São Francisco de Assis! Salve as Almas!", bati no peito e saudei, com um sorriso e os olhos marejados. A energia que o Caboclo emana é forte, arrepia e te faz sentir um guerreiro. "Ansê tem que lutar, meu fio, não pode cair. Lembra no ponto: Caboco caminha por cima da folha, embaixo da folha, em todo lugar. Esquece não meu fio. Ansê não tá sozinho, ninguém tá sozinho no mundo. O pensamento ruim entra porque ansê abre a porta, meu fio. Entonce vamo vibrar. Salve Zambi!". Olhei para Pai Preto com amor e carinho, eu sei (e ele sabe) que a relação de avô-neto é forte. Sorriu para mim com o cachimbo na boca, falou pausadamente e de forma mansa: "Zifinha nunca esquece: preto-véi levava chicotada de Sinhô amarrado no tronco e nunca pensou em desistir. Zifinha faz isso mais com a gente não, viu? A gira daquela noite foi forte e não te perdemo né. Passou três dias no hospital que é pra dar valor à vida. Queira voltar pra lá não, Zifinha. A gira só começou e não vai parar". Chorei, como era de costume ao falar com Pai Preto. Agradeci aos dois. Fui caminhar refletindo sobre todas as palavras, a presença.
De alguma forma eu ainda sentia todos comigo, alimentando esta pequena e importante centelha - reflexo da Criação, fonte potencial de amor e carinho.