Sons da madrugada

Sentindo-me desafortunada, com um andar lento, quase arrastado, chego à varanda, de forma deprimente, sentindo pena de mim mesma, dali se pode avistar quase cinquenta mil cidadãos, divididos em grupos, em famílias, em lares diversos. Mesmo parecendo andando a esmo tenho a sensação de ser guiada por mãos divinas que ali me conduziram por um motivo especial. Contemplo por instantes as luzes da cidade, e devo tentar pensamentos insanos da minha mente esvaziar.

Respiro fundo e me arrepio, a madrugada é fria, fito uma casa distante, tem uma luz acesa e reparo um carro entrar na garagem, duas badaladas soam no relógio da igreja, quando o homem alcança a entrada, cheira a bebida, talvez até a perfume de outra mulher que não aquela que ali o espera, já passadas horas que deveria estar para jantar, encara o olhar da mulher que é quase indiferente, já se acostumou com a vida, com a lida e naquela hora vai se deitar, tem três filhos para criar.

O bairro que vejo agora é nobre, elegante, numa casa suntuosa um bebê chora, suplica o colo da mãe, menina de quinze anos que ainda necessita do colo de alguém, filha de pais separados, nesta hora não tem ninguém, enquanto amamenta o filho, sonha com uma balada, lugar mais propício para ela estar e um belo romance iniciar.

Mas... Triste mesmo são as sombras na parede, efeitos fantasmagóricos, por uma vela acesa e um pai ajoelhado a rezar pelo filho que recebeu um diagnóstico terrível, e a mãe que anda do quarto à cozinha sem parar, como se neste trajeto pudesse achar a quem culpar ou um jeito fiel de se resignar.

Em um edifício modesto, que daqui se projeta bem pequenino, tem um jovem que enfrenta agora problemas com a sexualidade, se sente atraído por homens, mas não tem estrutura para isso suportar, este dilema não consegue desafiar, se nega a aceitar, daqui posso ver que está pensando em sua própria vida tirar.

Se como um milagre daqui tudo posso enxergar, mais um sentido se aguça em mim: é a audição, também daqui do alto se escuta orações, têm as da dona Terezinha, faxineira, a alegria concretizada em pessoa, está acordada agora porque perdeu o sono, não se preocupa em achá-lo, é sempre assim, nada lhe falta, aproveita para agradecer pelo dia abençoado que teve. O som que chega aos meus ouvidos parece um zumbido confuso de orações que se fundem, alguns pedem, outros agradecem. O mais importante é que todos estão ligados pela fé, e este zumbido se transforma em uma só prece quase a cantar, e na madrugada são sons a louvar.

Volto para a cama tento dormir, repenso naquelas pessoas, o meu problema agora foi minimizado, a beira de ridicularizado. Uno-me ao som da oração, numa prece de agradecimento, durmo com a certeza de que mais forte pela manhã vou despertar e o que vier posso com dignidade enfrentar.

Lilia Costa
Enviado por Lilia Costa em 27/06/2011
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