Pecados confessos de uma menina pagã

Se tem uma coisa da qual eu me orgulho nessa vida é a erradicação total de preconceitos que preservo em minhas atitudes. Sou uma pessoa incapaz de destratar alguém pela sua aparência, posição social ou opção sexual. Algumas vezes, não consigo concordar com algumas ideias, mas respeito. As histórias de cada um e as opções correspondentes, desde que não sejam prejudiciais a outrem, são por mim, isentas de julgamentos e falsos moralismos.

E foi numa dessas minhas súbitas vontades de comer chocolate no meio da noite que conheci Helena. Era uma noite gelada de Agosto. Passava das vinte e duas horas. Estacionei o carro na frente do único supermercado vinte e quatro horas da cidade e entrei para comprar os “pecados” dos quais não consigo ficar longe. No mesmo corredor estava Helena. Moça de, mais ou menos, dezenove anos, morena escultural e expressivos olhos verdes. Usava uma saia tão curta que mais parecia uma faixa. O decote era como uma vitrine, deixando a mercadoria em exposição, propositalmente. Percebendo a minha compulsão pelos doces a moça ensaiou, meio ressabiada, um sorriso.

- Tem coisa melhor que isso? – perguntei, retribuindo o sorriso.

- Com certeza tem. – respondeu, timidamente.

Esperando uma resposta maliciosa, quis a certeza:

- O que pode ser melhor do que um chocolate recheado?

- Um agasalho flanelado. – respondeu com firmeza.

Aquela resposta mexeu com os meus valores mais íntimos. Estava na cara que aquela moça fazia programa. Seu vestuário era como um letreiro, mas aquelas palavras pareceram-me, genuinamente, nuas, desprotegidas! Suas necessidades não estavam, assim, tão explícitas como sua profissão.

- Qual o seu nome? – perguntei interessada.

- Meu nome é Helena. Também sou compulsiva por doces. Conhece esse aqui? É um pouco caro, mas vale a pena. – entregou uma barra de chocolate branco nas minhas mãos e sorriu, sem pudores.

- Helena, você é daqui? – insisti.

- Não. Estudo aqui. Meus pais são de Minas Gerais. Faço Desenho Industrial. E esse foi o jeito que arrumei para pagar a faculdade. Até tentei outro emprego mas com o que ganhava, não dava nem para as despesas da Kitinet. Infelizmente, o meu corpo rende um dinheiro bem maior que o meu cérebro. Ganho em três dias o que eu ganharia em trinta, em outro serviço.

Quase desmaiei com a sinceridade das suas palavras. Fiquei com vontade de envolver aquela menina nos braços, levá-la de volta para sua casa e entregá-la aos cuidados da sua mãe. Ou, quem sabe, enchê-la de palmadas, na ânsia de trazê-la de volta a razão. Aquela menina tinha a idade do meu filho, que naquela hora dormia, encorujado, na comodidade do seu quarto.

Fiquei pensando em sua mãe, tão longe, alheia a difícil realidade da vida. Fiquei pensando em Helena, em seus sonhos, em suas escolhas e o preço alto que pagaria por elas.

Percebendo meus devaneios, a moça abriu sua bolsa, anotou alguma coisa e entregou o papelzinho pra mim.

- Você tem msn? Me adiciona, poderíamos conversar de vez em quando. Você é muito legal.

- Lógico, vou adicionar sim. Então tchau. Até mais! – despedi-me ainda atordoada por aquelas revelações.

Voltei para casa pensativa. A partir daquele dia comecei a conversar com Helena, vez ou outra, no messenger.

Era impressionante como seus papos eram idênticos aos amigos do meu filho. Helena estava longe de ser uma mulher, era uma menina pagã, com seus pecados confessos, sem maldade e sem juízo! Uma menina com sonhos e pesadelos, com ídolos e feitores, com necessidades e desalentos, com esperança e incredulidade, com remorsos e tormentos, com ousadias e fragilidades, com lágrimas expostas e sorrisos embutidos. Uma mulher com os seios a mostra. Uma menina com o coração retraído.

Uma mulher com gestos ensaiados e atitudes naturais.

Uma menina que ataca a vida com a fúria de um predador.

Uma mulher que cirze, diariamente, os rasgos do seu cotidiano para cobrir suas vergonhas, seus medos e suas escolhas.

Helena ainda é uma menina. Helena já é uma mulher.

Helena nem parece uma menina. Helena nem chegou a ser uma mulher.

Seus beijos são falsos e suas declarações, um plágio.

Suas unhas compridas, pintadas de cobre, ainda não conseguiram afagar um verdadeiro amor. Sua boca exageradamente encarnada está longe de encontrar um constraste perfeito. Suas necessidades vão além de um simples agasalho flanelado em noite de inverno e, infelizmente, não estavam ao meu alcance. Não fui capaz de embrulhar alguns dos seus sonhos em papel dourado e deixá-los, clandestinamente, na porta do seu coração. Não fui capaz de cobri-la com alguns conselhos moralistas, muito menos recriminá-la em suas escolhas desregradas. Quem sou eu para julgá-la? Antes de retirar o messenger do ar, fiz o que meu coração permitira. Comprei-lhe um agasalho flanelado, cor-de-rosa e deixei-o na porta da sua kitinet. No bolso, um papelzinho com os dizeres...

“Ainda acho que um chocolate recheado é bem melhor que um agasalho flanelado, mas como gostos e escolhas não se discutem, por favor, se cuide! Ahh, mais uma coisa: quando o frio cessar, por favor, menina Helena, volte pra casa!” Um grande beijo

Gil