Epitáfios cotidianos
Desassossegado. Em meio a tantos outros carros, parado. Seu celular toca inúmeras vezes. Atende. Do outro lado, a voz de uma criança decepcionada com mais uma ausência sua, em virtude do trabalho.
O semáforo permanece vermelho e o tráfego ainda congestionado. O ponteiro de seu relógio vivendo – e ele, a esmo, parado. Atrasado, sempre atrasado.
Irritado, repetidas vezes muda a estação do rádio, em busca de uma sintonia que lhe agrade. Encontra uma estação de rock e pop brasileiros. Está tocando Epitáfio, de Titãs.
Tamborilando os dedos no volante, acompanha a canção, distraído com sua letra: “Devia ter complicado menos, trabalhado menos... ter morrido de amor”. Por um momento, lança o olhar à foto de seus filhos no celular. “Nossa, como eles cresceram”, pensa. Gostaria de passar mais tempo com eles.
Ainda é quarta-feira e já está cansado, extenuado. O trabalho o consome, mas não reclama. Sabe que seu esforço se dá para atender às exigências de qualidade de vida de sua família. “A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier...”, ouve do rádio.
Ao fim do dia, afrouxa a gravata: com os vidros fechados, não importa para o trânsito as regras de etiqueta, desde que esteja no carro do ano.
O semáforo, enfim, verde. Ainda assim, os carros não se movem. Quando esboçam alguma mudança, o amarelo toma a vez. Com esforço, vence a distância de um carro ou dois quando o vermelho impede seu verbo de se conjugar no espaço.
Solta o volante, surpreso, ao olhar para o lado: uma forte luz, uma estrela cadente irrompe no céu.
Abatido, repousa os olhos e, não mais que de repente, se desfaz do cinto de segurança preso, antes, a seu suado tronco. Seu corpo se ergue, salta do carro e vence o céu.
Voa por sobre o trânsito e se surpreende com a soma de feixes amarelo e vermelho em direções opostas, nas diferentes pistas de uma cidade dourada de cais e caos.
De cima, os carros são pequenos como os brinquedos de sua infância e o faz lembrar a coleção de seu pai, de modelos antigos, que figurava a estante mais alta da sala de estar, na casa simples em que nasceu e foi criado com seus três irmãos. Uma das poucas vaidades de seu pai, que se debruçava por horas a cuidá-los e organizá-los, contando histórias sobre seus nomes e peculiaridades.
As pessoas nas calçadas parecem formigas miúdas, indo e vindo apressadas, atrás do açúcar cotidiano. E ao seu lado as nuvens parecem feitas de algodão-doce.
Sorrindo, se lembra da primeira viagem que fez com sua esposa e os dois filhos pequenos, quando enfim conseguiu férias que coincidissem com as das crianças na escola. Elas, no banco de trás do carro, brincavam de dar vida às nuvens, que por vezes eram ursos, outras corações – e assim, imaginando, foram por todo o percurso.
Subindo e subindo, é possível ver os contrastes da cidade grande, disposta como um grande jogo de construção, com encaixes economicamente pré-definidos – uma imensa tela, em que de um lado figuram as flores e, de outro, as cinzas.
A todos, contudo, o mesmo céu. Um imenso e abstrato lençol azul-marinho com recortes de fé: são as estrelas que trazem poesia à escuridão. São pequeninas claves de esperança quando o acorde do Sol se desfaz no céu, do lado de Lá.
Olhando para elas, é possível compreender o mistério do impossível – ou seja, de sua inexistência. E a alternância das cores do semáforo não importa mais. As buzinas terrenas já não incomodam. O silêncio das estrelas traz paz ao peito desassossegado que, de tanto correr atrás do atrasado, sequer sorria – bradava calado.
Sem caminho traçado, nem sentido desejado – sem sentir, amordaçado -, insistia em chorar sangue, tal coração malfadado. Incompleto.
Só que já não chora mais – do caos direto ao cais. No mesmo chão que pertence a todos e todos a ele pertence, dentre as luzes do trânsito sobressai o vermelho luminoso, piscando em tons alarmantes, de onde este Ícaro emergiu vôo – e agora há de voltar.
Olhando para baixo, observa a ambulância parada ao lado de seu carro. Uma multidão de transeuntes e curiosos começa a se aproximar e amontoar-se junto à atuação dos para-médicos.
As pessoas comentam umas com as outras o ocorrido. Apontam, tiram fotos, dão telefonemas, recomendam aos familiares outras rotas, pois agora – mais ainda que antes - se torna impossível trafegar por esta via.
Olham, mesmo, aliviadas, por não reconhecerem naquele corpo parente ou amigo. Talvez sequer reconheçam sua humanidade e semelhança. As manchetes dos jornais acostumaram a sociedade às atrocidades metropolitanas.
Dentre os motoristas, alguns saltam de seus carros e se aproximam do ocorrido, enquanto outros buscam atalhos para distanciar-se da situação. Os para-médicos se debruçam, agora, sobre o corpo estirado no chão, vestido em terno social, com a gravata frouxa ainda rente ao pescoço, embora agora tingida de sangue.
Checam seu pulso, abrem sua camisa e se preparam para uma massagem, com o intuito de que retorne à vida.
De cima, a tranqüilidade das estrelas não é suficiente para lhe afastar as lágrimas: é desse modo que se encerra sua vida, portanto?
Não houve momentos de despedida. Não ensinou seu filho caçula a ficar de pé na bicicleta. Talvez nunca tenha dito a sua esposa o quanto verdadeiramente a ama. E sua mãe, terá forças em sua tenra idade, para suportar a perda de mais um filho? Esta não é a ordem natural das despedidas – e da vida.
“Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer; Devia ter arriscado mais e até errado mais, ter feito o que eu queria fazer...”. Epitáfio ecoa em sua mente enquanto assiste de camarote ao espetáculo de sua vida e morte.
No carro, destruído, o celular insiste em tocar. Seu filho o chama para a comemoração de seu aniversário. Na data de celebração de mais um ano de sua vida, seu filho não pode vivenciar a experiência desta dor...
Eis que acorda. Dores intensas no peito, respiração árdua, trazendo novamente oxigênio ao seu corpo, sangue alimentando suas artérias. Emoção. A platéia vibra com o jogo das sensações. Bate palmas, se levanta, grita e se desmancha, enquanto os atores saem de cena e as cortinas se alcançam.
Em uma maca, vários exames são feitos. É levado para o hospital. Seus familiares são comunicados e, rapidamente, sua esposa em lágrimas irrompe pela sala de atendimento.
Entram depois seus filhos, correndo e trazendo um forte abraço. Beija suas cabeças e sorri enfim, olhando para sua família reunida: o pedido à estrela cadente ganhou vida – e “o acaso vai me proteger enquanto eu andar...”.