Relatos do cárcere
Relato sobre a prisão após manifestação contra a vinda de Obama ao Brasil
Todo o processo foi marcado pela repressão e por graves arbitrariedades. Quase no final do ato ocorrido na sexta-feira, dia 18/03, em frente ao Consulado dos Estados Unidos, a Polícia Militar começou a lançar bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha. O cenário era de guerra. Nós corríamos desesperados em meio às balas e bombas que explodiam do nosso lado. Nós conseguimos reunir um grupo na Avenida Beira-Mar e depois de 20 a 30 minutos do fim do ato nos encaminhamos em direção à Cinelândia, portando as faixas e bandeiras da manifestação. De repente, fomos cercados pela Polícia Militar. Eles nos mandaram sentar no chão olhando para baixo. Apreenderam as faixas e as bandeiras que estavam conosco e nos disseram que alguém do ato havia lançado um coquetel molotov no consulado e que este teria atingido um vigilante (foi só nesse momento, através da polícia, que soubemos do coquetel molotov, até então, tudo o que sabíamos, era que a polícia havia encerrado a manifestação com bombas). As nossas mochilas foram revistadas na mesma hora. Os policiais não encontraram nada.
Depois disso, fomos colocados dentro do camburão. Os policiais resolveram não nos algemar. Eles desrespeitaram, no entanto, um companheiro que era advogado (o Dr. José Eduardo) e que disse a eles que estava ali para assistir-nos. Mesmo assim, foi preso junto conosco, assim como um menor de idade, uma senhora de 69 anos, que havia se incorporado à manifestação por concordar com a defesa da soberania nacional e da luta contra a agressão imperialista a todos os povos do mundo, e um ativista que tinha levado um jato de spray de pimenta no olho.
Chegamos à 5 DP e ficamos numa sala separada. Não existiam quaisquer provas contra nós. Fomos novamente revistados, todas as bolsas e mochilas, e tudo o que o delegado da Polícia Civil encontrou foram panfletos. Mesmo diante das evidências, fomos todos mandados para os presídios de Bangu 8 e Água Santa. Para Água Santa foram 8 homens. Nós fizemos uma discussão de abrir mão de prisão especial quem tinha esse direito para ficarmos todos juntos, pois seria mais seguro e manteria o moral numa situação tão difícil.
Já no presídio de Água Santa, nossas coisas foram separadas e fomos revistados. É importante registrar o espanto do policial civil que nos transportou para o presídio e dos próprios carcereiros, que diziam não estar acostumados com presos como nós, pois estavam acostumados com bandidos. Ainda assim, tivemos que seguir a disciplina do presídio. Logo depois da revista, tivemos as nossas cabeças raspadas. Embora a administração afirme ser uma norma do lugar e por questões de higiene, não pudemos deixar de encarar como uma violência, pois, naquele momento, já éramos tratados publicamente com o status de presos políticos, mas estivemos submetidos a todo o regime disciplinar ao qual estão submetidos os presos comuns. Aliás, essa experiência na prisão, deu-me a certeza de que esta é uma instituição falida, que não recupera ninguém.
O cotidiano na prisão é terrível. Perdíamos a noção do tempo por várias vezes. No domingo, ficamos completamente incomunicáveis. A nossa aflição só aumentava. A situação só não foi pior porque tivemos a capacidade de nos organizar, de ficar sempre conversando, às vezes até cantando e fazendo brincadeiras para que ninguém se deprimisse. Conversávamos o tempo todo. O nosso confinamento foi absoluto. Ficamos numa cela e numa ala separadas dos demais presos, para a nossa segurança, o que só reforça o fato de sermos presos políticos. Os agentes e os presos que trabalhavam para reduzir a pena nos diziam que quando Obama fosse embora estaríamos soltos, o que nós também pensamos, pelo menos como a hipótese mais provável, pois sabíamos que os governos Dilma e Cabral só nos mantiveram encarcerados para dar uma satisfação ao imperialismo. Afinal, depois de todo o circo montado para a vinda de Obama, não era possível tolerar que ninguém jogasse água no chope da festa de comemoração da entrega do nosso pré-sal aos Estados Unidos.
Na cadeia, tivemos que nos organizar até mesmo para garantir a higiene. Improvisei um detergente com água e sabão para os nossos pratos que eram aqueles pratos de alumínio de quentinha. Nós colocávamos todo o lixo num saco e depois amarrávamos. No domingo, lavamos uma parte da cela para que os ratos que andavam pelos corredores do presídio não entrassem, ou pelo menos não ficassem na nossa cela, e não nos mordessem. E isso porque a cela havia sido limpa antes de nós chegarmos. Naquelas circunstâncias, devíamos ser vistos como VIP, o que só mostra a gravidade da situação no sistema carcerário brasileiro.
Nós não pudemos levar nada nosso para a cela. Só pudemos entrar com o uniforme da prisão, com o sabonete, o papel higiênico, a escova e a pasta de dente fornecidas pela prisão. Não pudemos entrar com as nossas toalhas de banho para a cela. Os nossos livros também não puderam entrar. Eles seriam uma valiosa companhia para fazer passar o tempo, mas aí como pensaríamos no castigo que estávamos levando? E o pior é que tanto a polícia quanto o governo sabiam que o coquetel molotov não havia partido de nenhum dos presos, sendo, provavelmente, alguém infiltrado para acabar com o ato e justificar a repressão o verdadeiro responsável. Desse modo, estávamos sendo punidos simplesmente por exercermos a nossa liberdade de expressão e de manifestação. Parece que o governo americano, que prende, mata e tortura no mundo todo, cobrou de seus anfitriões uma postura mais firme quanto aos protestos que fossem contrários aos interesses estadunidenses.
Na segunda-feira, conseguimos entrar com nossos livros e toalhas. Eu fiquei uma noite sem tomar um remédio que era um antiepilético, correndo o risco de ter uma convulsão dentro da cela. Depois de muitos protestos de familiares e amigos de fora do presídio e nossos pedidos dentro, eu recebi o meu remédio. A pressão também ajudou a aliviar em outros aspectos. No início, não tínhamos água potável, só água da bica. Com a pressão de amigos e familiares, conseguimos uma conta na cantina do presídio, pedindo principalmente água mineral e cigarros. A comida que comemos foi a do presídio mesmo, pois não queríamos abusar do esforço dos nossos companheiros do lado de fora e nem gozar de privilégios excessivos em relação a outros presos. Na segunda, conseguimos ter acesso aos jornais e tivemos visita. Antes disso, tivemos a visita do advogado Dr. Aderson, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, no sábado.
A disciplina era rigorosa. Duas vezes por dia tinha o confere. Nós ficávamos agachados, de cabeça baixa, em sinal mais de submissão do que de respeito, e éramos contados. Quando saíamos da cela, o fazíamos em fila, com as mãos para trás e de cabeça baixa. Tínhamos que chamar os funcionários do presídio de chefe ou senhor. Apesar disso, conseguimos ter uma boa relação com alguns agentes e com outros presos, que chamávamos de irmãos, pois é assim na prisão. Privacidade inexiste numa penitenciária como essa. O vaso sanitário, que é, praticamente, um buraco no chão, ficava exposto e não podíamos usar nada de cortina. Pelo menos, tínhamos chuveiro na cela. A luz ficava acesa a noite inteira. Foi bastante difícil dormir na primeira noite. Na noite seguinte, já pude perceber uma preocupante adaptação à situação, conseguindo dormir mais facilmente. Eu me cobria mais com medo de levar uma mordida de rato do que pelo frio. Mas sobrevivemos.
A lição que podemos tirar é que quando o Estado pratica uma violência dessas é para quebrar o espírito de luta, para desmoralizar, para amedrontar. Os governos Cabral e Dilma já perderam essa, pois saímos mais fortes. Conseguimos nos manter firmes o tempo todo, apesar de toda humilhação. Não descansaremos até que a verdade apareça e que o Estado seja responsabilizado por essa agressão. Fomos vítimas de uma prisão ilegal e arbitrária e sofremos com a prisão pela audácia de falar contra a política do imperialismo estadunidense e a política do governo brasileiro, que ocupa militarmente o Haiti e entrega o Pré-Sal. É uma grande surpresa que a presidente Dilma, que foi presa política na ditadura militar, tenha feito os seus primeiros presos políticos no terceiro mês de seu mandato, para agradar o imperialismo, o mesmo imperialismo que apoiava a ditadura. Saímos vivos do inferno. E só podemos agradecer ao amplo movimento que se mobilizou pela nossa libertação: os partidos políticos, como o PSTU e o PSOL, e alguns militantes do PT; os sindicatos, como o SEPE-RJ, o SINDIPETRO-RJ, o SINDJUSTIÇA e a CSP-CONLUTAS; as entidades estudantis, como a ANEL, o DCE-UFRJ e o DCE-UFF; os parlamentares, como o senador Lindberg Farias, do PT, os deputados federais do PSOL, Chico Alencar e Jean Wyllis, os deputados estaduais do PSOL, Marcelo Freixo e Janira Rocha, o ex-deputado federal e presidente do PSTU-RJ, Cyro Garcia, e o deputado Stephan Nercessian, do PPS; a OAB, a ABI, os nossos advogados, os nossos familiares e amigos. Foram muitas vozes juntas ecoando pela liberdade e nem os governos nem a mídia puderam ignorar. Estamos livres no momento, mas o processo segue e precisamos arquivá-lo para que as liberdades democráticas sejam restabelecidas. Até o momento, vivemos um processo que segue a dinâmica de um Estado de exceção. O direito foi ignorado, a Constituição foi ignorada e as liberdades conquistadas com o fim da ditadura foram ignoradas. A democracia no Brasil está em jogo. A criminalização dos movimentos sociais deve ser combatida, sob pena de rumarmos a passos largos para uma ditadura, já não tão disfarçada, que garantirá toda a tranquilidade para os negócios que serão feitos na Copa do Mundo e nas Olimpíadas e garantirá os lucros dos banqueiros e dos empresários durante essa crise econômica, penalizando a classe trabalhadora, que pagará a conta da crise se não lutar contra essa situação. É o nosso direito de lutar por uma vida melhor, por liberdade e justiça que foi posto em xeque com essas prisões políticas.
Rafael Rossi - professor de História, dirigente do SEPE-RJ e militante do PSTU