Saquinho de pão (ou O poema)

Treze anos se passaram desde que eu soube que havia perdido a chance de beijá-la, o poema não mais existia em meu dia-a-dia, ela não mais existia, eu não mais existia na vida dela, quando a musa enfim apareceu, de repente, perguntando-me sobre as rimas dedicadas à alva dama, publicados em mil saquinhos de pão e assim distribuídos, de forma que um saquinho havia ficado com ela, outro comigo, o meu agora estava esquecido no meio de alguma pasta preta, o dela, diz-me hoje, roubaram-no junto com a carteira em que guardava fotos do pai.

Visitamo-lo hoje, soube pela lápide que morrera um ano antes que o meu. Ela levou flores ao dela, eu acendi velas ao meu e a outros de meus parentes. Minhas velas teimavam em apagar com o vento, enquanto eu riscava os fósforos que pedi para ela trazer.

Aqui, sentados neste banco do cemitério, depois de acendidas os pavios, o cheiro da vela e a presença, um pouco mais distante, de pessoas realizando velório, tudo isso me fez sentir-me bem, há algum tempo não percebia como é bom, como acalma esse cheiro de vela acendida aos queridos que partiram e aos anjos da guarda dos que amo (inclusive ao meu) e que ficaram para continuar a história. Estou com muito tesão sim de beijá-la, de agarrá-la e sentir seu corpo bem colado ao meu – pronto, o agarrão é rápido, essa se desvencilha, não quer que ninguém pense besteiras, afinal estamos em um cemitério e ela está namorando, deixa claro que não é desse tipo de mulher.

E por que então nós dois aqui, juntos, agora, após treze anos?

Se eu não gostasse de ti não estaria aqui, porpeta, ela responde, mas tenho para mim que aqui, ao lado dela, ainda estou muito longe. Ela, na verdade, porque sou todo aproximação, deixo claro que a desejo, e não temo que pensem algo errado de nós, não busco dar um show, só quero abraçá-la forte, senti-la realmente em meus braços, um beijo certamente não há de escandalizar ninguém, e os mortos, embora embaixo de flores e vasos e banquinhos e dedicatórias as mais diversas, se estivessem do lado de cima certamente buscariam cada qual o seu par, sua alma gêmea – muitos enterrados lado a lado – e dariam glória a Deus por essa tarde calma e com sombras das árvores.

Passei por uma lápide cheia de brinquedos pequenos... Um anjo que nasceu e já morreu, ela me explicou. Fiquei pensando, sem me aprofundar muito, sobre como poderia se sentir aquela mãe que levou os brinquedos... Alguma esperança ali? Apenas tristezas? Saudade daquele com quem talvez poucos minutos se tenha convivido? Não me atrevo a entender a dor dessa perda, apenas passo pela lápide, sorrio aos brinquedos, e busco olhar fotos de outros falecidos.

Curiosamente caminhamos sobre a grama e entre as lápides eu e essa mulher desenterrada viva de profundos 13 anos de terra e pedras em cima, como se acabasse de ter acordado do caixão em que delicadamente a deitei, e me mostrasse o quão fresco ainda é o seu sorriso, o quão meigo ainda é o seu olhar, o quão carinhosa foi a sua voz ainda hoje pela manhã. Desenterrei a ela ou ao moleque de 17 anos que por ela havia se apaixonado antes de ter sua primeira namorada? Acho, isso sim, que cavoucamos o mesmo solo em que estávamos nos enterrando, uma mesma raiz, uma mesma seiva há de nos ter aproximado de novo. Não me importa a planta, foi vida suficiente para acordar uma semente após 13 ciclos dos mais diversos. Mas antes voltemos ao telefonema naquele dia de 1999, é preciso revisitar o passado antes de assentar em solo firme este novo futuro.

Daqui a 13 anos ela me dirá que foi ela quem me ligou, e que queria falar comigo, e que eu briguei com ela – veja, já está noite agora, já nos despedimos e ela não disse o porquê de eu ter brigado com ela, é possível que ela não saiba, porém também não o sei – e demoramos mais alguns anos até nos falarmos novamente. E eu nem terei lembrado direito desse ano de 2006. Fato é que o telefonema estagnou no tempo, não havia outro jeito de eu assimilar o que ela acabava de falar, era o mesmo sentimento – ao avesso – que me havia impedido de cortejá-la mais incisivamente: não fiquei com você porque achei que você me acharia muito velha. Eu tinha 17 anos quando a desejei, e 19 quando soube que ela também havia me desejado e que agora haviam 2 anos de distância entre o beijo que não aconteceu e a paixão renascida. Eu quis morrer, me matar – não, não me matar, mas me bater bastante – por não ter ido até o fim naquele dia. Desliguei o telefone com muita raiva de nós dois, e o poema haveria de aguardar mais de uma década dentro da pasta preta. Mas antes voltemos àquela mesinha de plástico naquele salão de festas daquela conhecida – que no futuro estarei há anos sem rever, sabendo apenas que terá casado – do curso de Letras, em cujo curso e universidade entrarei daqui a mais ou menos 4 anos sem saber agora que assim o farei e que, passados mais 6 anos, novamente o destino universitário girará a roda da fortuna e reiniciarei novo ciclo.

Ali, naquela mesa, está a mulher de pele clara e cabelo longo, volumoso e escuro a quem dedicarei estes versos que já comecei a escrever com caneta vermelha numa pequena folha de papel. Impulso, sim, impulso a alimentar minha caligrafia, ao final deste churrasco entre amigos – amigos entre si, eu um novo conhecido na turma – terei escrito e entregue alguns poemas a várias pessoas da festa, passados tantos anos olharei para trás e me envergonharei um pouco de ter bebido, ficado alegre ao ponto de fazer versos sobre encomenda numa festinha de fim de semana, quer coisa mais fora de moda, mais cafona, mais ridícula, mais tosca que essa? Não importa, eu não terei conseguido beijar essa mulher a quem dediquei os versos em questão, e não a conseguirei beijar na segunda vez que nos virmos, e nem na terceira, em que a visita a um cemitério nos aproximará um pouco mais. A impotência alimentando o desejo de que o beijo se concretize, tenho medo de acreditar que beijá-la enterrará para sempre nossa possibilidade de história de amor.

Não lembro de cor os versos, está na pasta preta e não estou com vontade agora de buscar o poema, ela insistiu para que eu lhe entregue uma cópia, disse que deseja mostrar às amigas, achei isso desculpa furada, se for verdade até não seria ruim, mas eu mesmo preciso fazer valer a realidade de que não sou mais o jovem de 17 anos, amor platônico é para a adolescência e eu já vivi muito isso, falarei para ela assim que ela me der a oportunidade, enquanto dirige sem querer parar para aproveitarmos a tarde na Lagoa da Conceição, diz que está com dores por causa da operação, eu realmente acredito, e realmente é uma pena estar na presença dela sem podermos sair daquela nave, sentarmos numa cafeteria e pedirmos um café. Ela não entende que o café é algo figurado, se não lhe agrada que peça um suco, sem problemas, o mais importante é sair do carro, sentarmos a uma mesinha, nos darmos as mãos... ela realmente está com dores, logo a carona terminará e ela me deixará à porta de minha casa, sem o beijo? Sem o beijo, ela insiste em recusar ou eu, em tentar beijá-la? Pergunto-me várias vezes o porquê do aceno – a distância – dela reavivar esta até então sepultada paixão, ela diz que também não sabe. Casou, descasou, tem filhos já adolescentes – sentado à porta de minha casa, nesta cadeira de plástico recém comprada, pensarei: Que fiz de 2003 para cá? Quase dez anos sem publicar nada decente... – e eu estou aqui, ainda tentando terminar minha graduação.

Diz ela que o pai, ao chegar em casa com o saco de pães, e tendo notado o nome e sobrenome da filha no saquinho, perguntou a ela que história era aquela da alva dama. Ela não acreditou quando ele lhe mostrou o poema, impresso no saco de pão, e correu à padaria para pedir um “exemplar” para si. Justamente desse foi o que mais saiu, senhora, saíram todos, só ficou este que é meu, lhe dirá a atendente da padaria assim que ela questionar sobre as embalagens. Não contente, voltará a sua casa, pegará o original, escrito a caneta vermelha numa folha de caderno – sim, lembro-me agora, era um caderno pequeno, de espiral metálica – e mostrará a prova do crime à atendente. Esta ficará estupefata e chamará todos da padaria para verem o poema, se encantará com a declaração de amor e a presença da musa e decidirá que, agora sim, a senhora merece, depois dessa pode levar a única embalagem que restou.

Meu caminho e o do pai dela se cruzaram naquela embalagem de pães, ficarei feliz, na visita ao cemitério, por isso, sei lá, apenas ficarei feliz com essa ponte atemporal. E ficarei feliz de ter acendido velas e orado por luz a meu pai, meus dois avôs, a avó materna, uma tia-avó benzedeira a quem eu amava muito, aos nossos anjos da guarda. E em algum momento do retorno da visita, ela me perguntará por que não publiquei o poema dedicado a ela. Mas ele foi publicado, e foram mil exemplares, dos quais novecentos e noventa e oito foram provavelmente a proteção de muitos pãezinhos. Mas por que não em livro? Ainda não foi o momento, responderei, e direi que, sim, a história do poema em si, de como nos conhecemos naquela tarde, da visita ao cemitério, dos treze anos reaproximados, isso sim poderia inspirar uma nova história, porque hoje somos outros a conter os mesmos, e uma crônica ou conto conteria melhor o que contar.

Mas para isso os personagens da história precisam de um desfecho, até agora só há o beijo não concretizado, a paixão não consumida, o desejo não apaziguado – você é um problema mal resolvido em minha vida, isto sim, direi a ela, e ela me dirá que terei tido várias namoradas e retrucarei que os mortos voltam sempre, enquanto não nos formos, e isso não é morrer nem viver, é latejar. Penso sinceramente, e isso não direi a ela, que essa história não dará em nada, porque o poema, por mais que o re-entregue à mulher, não chegará à musa, bem como serei eu e não o poeta a postar as palavras que um dia pairaram sobre minha alma. Diz ela que me ligará mais vezes e que espera que eu não brigue com ela, não digo nada, o silêncio nesta parte servirá melhor, por via das dúvidas comprarei um ímã de geladeira com duas tartaruguinhas e entregarei a ela.

Veja que são duas tartarugas e elas não estão se olhando, ambas estão apontando para o oeste, essas duas tartarugas representam a velocidade da nossa paixão e a da frente é você, sempre fugindo enquanto busco alcançá-la. Ela achou fofa a lembrança e se despedirá prometendo me ligar. Ela ri para esconder tanto de si e agora sabe que eu já percebi isso, pois assim muitas vezes também o faço, somos de mesmo signo, mesma seiva, mesmo silêncio significativo e ausência não planejada.

Fiz até a barba para te ver, busquei não alimentar expectativas mais do que eu não pude resistir, ouvi tu me dizeres que estás ficando com alguém, fiquei em silêncio, dei indiretas, das mais diretas possíveis também, pus preto no branco para te dizer que ainda te acho gostosa e linda e que não é só isso, afinal até hoje a mulher que mais amei foi a minha primeira namorada, e sabes – te disse há pouco – que por ti me apaixonei antes do meu primeiro beijo e da primeira namorada e da primeira transa, foste o Urfaust de minha pena, sabes tudo isto, por isto que fique bem claro que sou homem o suficiente para me amar um pouco mais e te pedir que te resolvas primeiro com teu amor – ou desamor – atual antes que nos vejamos novamente.

Queres um amigo? Não busques a mim, que te velei com pesar há treze tempos e te retomei nos braços ao pensar na tarde de hoje.

Isso não é uma crônica tampouco é dedicado a ti, e se há algo de literário hoje que valha o embrulho dos pães, é que estamos vivos, e a realidade, mais natural que a escansão de decassílabos e alexandrinos, é que poetas só se apaixonam pelas musas, as mulheres e os homens só podem ter a si mesmos de verdade, e a verdadeira rima se cala para a vida que prossegue.

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Pequeno posfácio: Na época em que escrevi esse texto, ao reler e revisar aqui e ali as imperfeições de produção textual, achei por bem coroar o produto final com o título de 'O poema' (inclusive para contrastar, propositadamente, com o conteúdo em forma de crônica). Ao postar no Recanto das Letras esta crônica, contudo, achei por bem renomeá-la para 'O saquinho de pão', pois queria, dentre outras coisas, um título que chamasse a atenção dos leitores de forma singular. Prestes a concluir a postagem, mais uma vez a dúvida sobre o título se abateu, pois o título original lutava para manter seu lugar ao sol (ou à chuva, pois agora é de madrugada em Florianópolis e uma deliciosa chuvinha lá fora embala estas pequenas confissões). Assim, deixo a cargo de você, amigo(a) leitor(a), (e somente após sua leitura da crônica), escolher um título que, na sua opinião, resuma da melhor forma este texto e, ao mesmo tempo, sirva de hábil chamariz a novos leitores. (Como estou com um livro no prelo, se a sugestão de algum leitor for escolhida, o nome do leitor será lembrado na publicação da crônica e o leitor receberá, no lançamento do livro, um exemplar autografado.)