Dezenove Filhos 


Muita gente vem ao Sul Maravilha em busca de melhores condições de vida. O interessante é que mesmo como a grande movimentação humana, nunca se acabou de despovoar o Norte e o Nordeste. Sempre vem mais alguém, e ficam aqueles que lutam bravamente, em suas trincheiras, contra as más condições de vida.

O Centro-Oeste também é refugio contra a miséria, em especial por Brasília, a capital feita em madrepérola, reluzente no cenário nacional. Dá-se a impressão de que sobram oportunidades por aqui. As condições são melhores, sem falsa modéstia, principalmente para quem consegue desfilar nos gabinetes acarpetados.

Conheci, durante um momento de espera, na aula de natação de uma de minhas filhas, uma interessante mulher. Digna, do alto de seus sessenta e tantos anos.

- Minha mãe teve 19 filhos. 

- Quantos? Repeti a pergunta, não por que eu fosse surdo ou mal tivesse entendido, questionei por espanto. A mesma pergunta que repetimos quando alguém que amamos morre. Queremos nos certificar de que não é um trote, ou brincadeira de péssimo gosto. Abandonei a intenção de continuar a leitura do volume que trazia, para ver se o tempo de espera acelerava, e concentrei-me na mulher, certos conhecimentos não se adquire somente nas páginas impressas: 

- Dezenove filhos. Ela respondia até com certo orgulho no ar. 

- Todos ainda vivos? 
- Não, ela sorriu, oito já morreram. Eu sou a caçula. Novamente pude sentir-lhe orgulhosa, não sei se por ser a “mais nova” ou por estar ainda viva. 

- Como se cria 19 filhos?
- Naquele tempo criava-se menino igual gado, era só soltar por aí. Não precisava escola, plano de saúde, essas coisas. Deus olhava, e ela ria com gosto. 

- A vida era mais simples, concordo com a senhora. Hoje enchemos nossos filhos de mimos, procuramos dar do bom e do melhor, criamos outras necessidades.
- O Senhor tem razão. Naquele tempo ninguém preocupava-se com isso não. Os homens tinham que ter muitos filhos ou era mal falado. Diziam que não davam no couro, que não eram machos. Homem para ser homem tinha que ter uma filharada a perder de vista. Era como o povo pensava. 

- Seu pai fazia o quê?
- Trabalhava na roça, sempre plantando e colhendo, era um homem tinhoso, rígido, trabalhador. Trabalhava principalmente à noite, pensei. Ela adivinhou-me o pensamento: 

- O senhor deve estar curioso com os dezenove filhos, lembre-se que naquele tempo não havia televisão. E ela ria. Sorri para acompanhar, mais interessado nos meandros da história. Uma família com 21 membros é digna de nota. Quis saber mais: 

- Quantos anos seu pai viveu?
- Morreu com quarenta anos. 

- Nossa, muito novo não?
- Foi, muito novo. Deixou minha mãe com aquela filharada. Ela criou todo mundo, do jeito que pôde, morreu com sessenta anos. O olhar ficou distante, como se ela enxergasse o passado. Os olhos umedeceram. Quanto sofrimento teria aquela mulher atravessado? Hoje, nota-se na pele, nas mãos, na sua expressão o peso de uma difícil existência. Eu quis dar outro rumo à conversa: 

- E filhos, a senhora tem?
- Tenho três, todos vivos e morando aqui. Um deles é o pai destes garotos. E apontou-me dois netos. Um na piscina, colega de minha filha, outro ao seu lado, em uniforme de futebol do glorioso Goiás Esporte, nota-se que sou esmeraldino apaixonado. Todos com saúde, trabalhando. 

- Algum dos seus irmãos se formou?
- Que nada moço, e lá a gente tinha tempo de estudar? Logo que os braços conseguiam segurar enxada, todos íamos para a roça. 

- E os seus filhos, estudaram?
- Sim, todos formados. Novamente ela se orgulhava, contente pela sua vitória. O pai destes meninos, por exemplo, estudou contabilidade, hoje é dono de uma gráfica. A vida por aqui é melhor, é dura, mas melhor. Olhei para o menino. 

- Qual o seu nome meu jovem?
- Lucas.
- E o seu irmão?
- Tiago. 

- Todos com nomes bíblicos. São evangélicos? Estava óbvio, pelo modo como ela se trajava. Cabelo em coque. Uma longa e típica saia, além dos joelhos. Uma blusa com detalhes coloridos, florais. O modo de andar e o porte.
- Sim, freqüentamos a Igreja ****. 

- Você também Lucas? Ele balançou a cabeça confirmando.

A aula de natação terminou e eu tive a honra de conhecer uma parte da vida daquela mulher, atestando o que disse Euclides da Cunha: “o sertanejo é um forte” – uma raça admirável, felizmente, são brasileiros.