Um show intimamente particular

Sou fã incondicional do Roupa Nova. Adoro o estilo romântico, a poesia das letras, a melodia da voz. Não perco um show. Tenho todos os CDs, todos os DVDs. No último show, que aconteceu em Bauru, fui sozinha. Meu marido, na época, estava viajando. Cheguei duas horas mais cedo e fiquei quase no gargarejo. Lotação geral. Logo na segunda música me chamou a atenção o comportamento de uma mulher. Muito bonita, aparentando uns trinta e oito anos. Não abria os olhos nem por um momento. Entrava música e terminava música e lá estava ela, de olhos cerrados, acompanhando as melodias; ora sorrindo, ora compenetrada. Seu show era particular, com cenário personalizado. Permaneceu assim durante todo o tempo. Na última música ela permitiu que a vida voltasse a pulsar em seus devaneios. Lágrimas jorravam dos seus olhos sem prévia permissão. Não tive a coragem de invadir as suas lembranças. Fiquei pensando: “Qual sentido teria aquelas músicas em sua vida? Quais os flashes foram compostos por aquelas trilhas sonoras? Aquelas lágrimas denunciavam saudades, decepções ou alegrias? Cenas que foram revividas, reinventadas ou eternizadas? Momentos que foram sepultados ou uniões sacramentadas?

A vida tem cor. Em alguns momentos as cores primárias são evidenciadas, em outros, os tons se misturam, aquarelando a sobriedade dos nossos sentimentos. O cinza é a base, o fundo. Cabe a nós uma demão amarelo ouro para iluminar a tela.

A vida tem som. Isso é inevitável. Cada melodia nos remete uma cena. O som da saudade, o som do arrependimento, o som do nascimento, o som da perda. O som do dia, o som da noite. O som do choro, o som do riso.

A vida tem cheiro. O cheiro das pessoas que amamos. O cheiro das más recordações. Cheiro de brisa, de chuva, de mar. Cheiro das almôndegas da minha avó, do pão caseiro da minha mãe, da colônia pós-barba do meu pai, do leite com groselha da minha infância. Cheiro de tangerina, de limão rosa, de pitanga misturada com amora.

A vida tem gosto. Gosto de leite condensado cozido, de pimenta malagueta utilizada no feijão da tia Nice, gosto de manga verde no pé. Gosto de pecados nem sempre confessados. Gosto de beijo na boca, gosto de achocolatado morno, de suco de morango gelado, de sorvete de abacaxi com vinho, de café sem açúcar... de leite ninho com canela, de geléia de mocotó no copo. Gosto de azedo, gosto de vingança, gosto de vitória, gosto de traição.

Cada gosto, uma lembrança. Cada cheiro, uma história.

Cada som, uma memória. Cada cor, um acontecimento. Fatos que compõem uma vida.

Naquele show, os músicos não eram mais importantes do que o som que produziam. Nada foi maior que o espetáculo particular do qual aquela mulher reviveu. Jamais saberei o motivo daquelas lágrimas, porém tenho a certeza que ali, naquele momento, havia uma fascinante história. Não sei a cor, não senti o cheiro, não provei o gosto, apenas compartilhei do mesmo som...

Um mesmo som que possibilitou a ressurreição de centenas de lembranças. Ali, naquele espaço, havia uma explosão de cores, uma mistura de cheiros, uma composição de gostos, uma junção de acordes e uma amálgama de emoções eclodindo num só coro, estilhaçando-se em inúmeras interpretações!