O solitário

-Bom dia.

Heitor nada respondia, nem agora, nem nunca. Sempre chegava em sala e ia para o seu canto, ignorando a tudo e a todos. Não tinha um único amigo, pois, apesar de todos os esforços alheios para que se enturmasse, era muito fechado; amores, tampouco, sua aparência não era das melhores: era deveras baixo e troncudo, os cabelos, assim como os olhos, não tinha o brilhos característico das pessoas vivas e sãs, nestes últimos, enormes olheiras, causadas pelas noites em claro, passadas em companhia de seus únicos amigos, os livros. Já lera de todos os tipos de livros em sua vida, pequenos livros de poesias, extensos romances, densos livros de filosofia, complexos livros científicos e belos livros teológicos; a leitura, porém, não o fizera ser uma pessoa rica, porque seu coração, endurecido pela solidão, impedia que fosse tocado pela mensagem dos livros. Para Heitor, não havia diferença entre um livro científico e uma tragédia sobre um amor impossível, ambos eram um amontoado de palavras que apenas serviam para encher-lhe o tempo. Conquanto fosse troncudo, não era forte, o excesso de leitura e a inimizade com todos o fizeram uma pessoa fraca, tanto física quanto emocionalmente: não só era fraco no corpo, mas também no espírito, seu humor podia mudar bruscamente de uma hora para a outra, devido a um comentário infeliz. Algumas pessoas, de seu convívio, diziam que essa mudança de humor era do seu comum estado de indiferença para a raiva, que seriam as duas únicas emoções que Heitor poderia sentir. O seu maior problema não era ser excluído, mas sim que fazia questão de se excluir, achava que as outras pessoas eram inferiores, não falava com elas para não emburrecer, mal sabia que o único burro era ele. Mas, enfim, voltemos à história.

-Bom dia. - disse Juca.

-Hmpf! - um grunhido foi a melhor resposta que conseguiu dar, e sentou-se em sua habitual carteira, na última fila e coluna, perto da qual ninguém ousava ficar, garantindo assim o reinado de Heitor sobre 'seus' dois metros quadrados de sala de aula.

No começo do dia, as aulas correram como em outro dia qualquer, os professores entravam em sala e mandava os alunos se sentarem, fazia a chamada, dava a matéria, pedia silêncio, eventualmente tirava um ou dois alunos da classe, ouvia o sinal da troca de horário, sempre prologava a aula por uns minutos e, enfim, deixava a sala para o próximo professor que entrasse. Os alunos conversavam, dormiam, arremessavam bolinhas de papel, assistiam à aula, brigavam, gritavam, andavam, cantavam, mas Heitor estava sempre imóvel, sentado em seu lugar.

A aula de matemática corria muito bem, como o professor estava começando um assunto novo, todos estavam prestando atenção na matéria:

-... E então, a gente pega o número de casos favoráveis, e divide pelo número de casos possíveis... - dizia o professor, ao notar que Heitor era a única pessoa que não tinha o olhar fixo no quadro, e que tinha em suas mãos um aparelho eletrônico, daqueles que têm músicas, jogos, rádio, calculadora, agenda, cronômetro, internet, mas que não pode ser chamado de telefone, não no sentido estrito da palavra, pois a última finalidade daquele aparelho para Heitor, que não tinha amigos e ia para a escola de ônibus, era fazer ligações. Ser surpreendido com algum aparelho eletrônico em sala de aula é suficiente para a retirada do aluno da classe, mas o professor, um simpático velhinho, de óculos no rosto e ralo cabelo branco, de quem todos os alunos gostavam, sabia que a melhor coisa a se fazer não é tirar um aluno de sala no dia em que se dá matéria nova, mas pedir encarecidamente para que guarde quaisquer objetos alheios à aula, que possam gerar desatenção, como normalmente acontecem com os adolescentes.

-Heitor, preste atenção na aula.

-Mas eu estou prestando atenção.

-Não tente me enganar, você estava aí jogando.

-Se eu estava jogando, por que o senhor não me tirou de sala?

-Porque estamos vendo matéria nova, e eu não gostaria que você a perdesse.

A essa altura do campeonato, toda a classe já voltara seu olhar para Heitor, que, percebendo isso, começou a se estressar, mal sabendo que isso só o fazia atrair cada vez mais atenção.

-Professor, continue a aula, agora.

-Calma, Heitor, não se exalte, eu só pedi para que prestasse atenção na aula.

-Eu já estava prestando atenção, agora, por favor, continue a aula.

-Tudo bem, guarde o celular, por favor.

A sala não ficou mais em silêncio até finda a aula, todos cochichavam sobre a atitude de Heitor:

-Que coisa ridícula.

-Quem ele acha que é, querendo ensinar ao professor como dar uma aula?

-Devia ter sido tirado de sala.

-O que esse mané tem na cabeça?

Essa não foi a primeira vez que Heitor causou polêmica na turma, diversas vezes ele tomava atitudes de sanidade duvidosa, como dormir a manhã inteira e, no horário de educação física, na aula de relaxamento, sentar no colchonete e ficar o tempo todo com o olhar fixo para o nada; ou voar para cima de um garoto que pegara sua régua sem pedir, numa velocidade tal, que as pessoas que estavam assistindo, ao piscarem os olhos, se depararam com Heitor não mais sentado em sua carteira, mas no chão, enforcando o garoto com uma chave de pescoço. Não raramente, quando o professor dizia que quem não quisesse assistir à aula poderia sair ser maiores problemas, ele deixava seu lugar, e se dirigia para os bancos que haviam no corredor da sua sala. Mas talvez a atitude mais incomum que ele tomou foi uma vez que discordou de todos os cientistas, e começou a tentar negá-los em sala de aula, com animação e insistência tão grandes que o professor teve que tirá-lo de sala, a fim de poder prosseguir com a matéria.

Heitor não era capaz de fazer as coisas mais simples, como assobiar na rua, ou balançar o corpo ao som de uma música, não se sabe se por vergonha, por desilusão da vida, ou por excesso de razão. O consideravam um louco, por não sentir as coisas simples da vida, mas procurar razão para elas. Chesterton já dizia "O louco não é o homem que perdeu a razão, mas o homem que perdeu tudo, menos a razão.". E Heitor era do tipo de homem que dava significado a cada buzinada dos carros, a cada canto dos pássaros, a cada cochicho dos colegas e a cada passo dos transeuntes. Mas não era uma razão qualquer, não era a razão racional, comum a todos os homens, mas a sua própria razão, criada em seu mundo particular, que só fazia sentido para ele, e mais ninguém.

E assim Heitor passava seus dias infelizes e racionais.