A MISSA

Boa noite a todos. Vamos iniciar nossa celebração em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O leitor anuncia solenemente ao dizer as intenções para a celebração: por alma de José Gomes, Maria Cândida, Estela Faria... e por fim, pelo sétimo dia de João Alfredo de Mato Góis.

É sempre assim que se iniciam as missas. A gente nem ouve na verdade a lista de nomes pelas quais esta sendo oferecida aquela celebração. São nomes apenas, num arrolamento chato, às vezes enfadonho e cansativo que a gente se acostuma todo dia de missa. Naquele dia porém, chamou-me a atenção uma senhora magrinha, blusa preta, saia azul, com uma sapatilha simples, sentada ao fundo da igreja lotada e eufórica com a celebração de bodas de prata de Antônio e Helena. Ela chorava baixinho, um choro-lamento sofrido, doído e condoído por dentro da alma. Seus olhos estavam úmidos de saudade pouca, mas profunda, densa, irreparável. Estava viúva fazia sete dias. Fora casada com Góis durante, coincidentemente vinte e cinco anos, e havia comemorado em casa a união, de forma bem menos pomposa e solene. Ele estava acamado há dois meses e não pudera ter uma celebração à altura da comemoração. Talvez isso tenha doído mais ainda em Cristina que ali entregava a Deus a alma de seu marido, companheiro por tantos anos. Ao seu redor algumas pessoas também estavam chorosas. Seus filhos e amigos, pensei. Provavelmente sentindo a dor da perda e a dor da mãe, ali tristonha e pensando inevitavelmente no amanhã sem o companheiro de todas as horas.

Góis tinha quarenta e cinco anos apenas. Casou-se jovem, e jovem também se foi. Ao final da missa, a família distribuiu santinhos como lembrança daquela perda. Via-se na foto um rosto risonho, feliz, imagem captada num dia de festa. Era no aniversário de um ano do primeiro netinho, Jéferson. Abaixo da foto, as datas marcantes de nascimento e morte. Na porta principal da igreja, Antônio e Helena recebiam os cumprimentos, enquanto um casal de crianças muito bem vestidas entregava convites para uma festa no clube da cidade. Quatro vidas e duas emoções antagônicas celebravam-se naquele sacrifício místico de Cristo e entrelaçavam-se no mistério da celebração eucarística.

Parei um momento e sentei-me perto da família que chorava. Ouvi alguns comentários sobre a morte do homem que deixou a vida esvair-se de si mesmo, vítima de um acidente automobilístico quando viajava a trabalho. Trabalhava muito como vendedor e às vezes nem se alimentava direito para chegar mais rápido. Acabou tendo problemas de saúde que foram comprometendo-lhe a atenção. Voltava de uma cidade próxima, não estava muito cansado, diziam. Acreditavam que ele havia sentido mal, pois entrou contra mão em uma reta onde estava acostumado a transitar com frequência, quando colidiu de frente com uma carreta que vinha em alta velocidade. Sobreviveu por sorte ou azar, não saberia definir, pois teve o corpo completamente ferido, além de perder a lucidez. Ficou perdido ali mesmo naquela estrada e nas ferragens de seu carro, o sonho da formatura do filho em medicina e da filha em direito. Ficou a vontade de ver nascer o segundo neto que sua terceira filha esperava para dali a cinco meses. Tudo ficou naquela estrada. Restaram lembranças, lágrimas, saudade, nostalgia, pesar... Restou o choro inconsolável agora de Cristina, que não se continha em cada abraço de um amigo e um afago carinhoso de quem ali por aquela porta saía.

Não saí da igreja imediatamente. Parei para pensar um pouco na cena que via. E já havia visto cenas iguais tantas vezes. Reparei nos outros que saíam devagarzinho da igreja: uns ainda fazendo algumas orações finais, pedindo bênçãos, curas, e tantos motivos outros. Quem seria, pensava eu, parente de Maria Cândida? Alguém ali seria filho de José Gomes? Foi aí que me dei conta de que as listas de intenções proclamada no início das celebrações, são listas de dores, sofrimentos, doenças, acidentes, suicídios, violências inúmeras, e tantos outros motivos que levam as pessoas para o outro lado da vida. Cada nome tem uma história e não deveria ser apenas um nome numa lista chata. Devia ser um momento de veneração, lembrança e reverência àqueles que já fazem parte da “pátria celeste”. São homens e mulheres que por essa Terra passaram, deram sua contribuição, trabalharam, sonharam, construíram, amaram e hoje já não estão mais entre nós.

De súbito o padre me põe a mão nas minhas costas e diz:

__ Tudo bem, meu filho?

__ Claro padre, só estava pensando um pouco. Já estou saindo, quer fechar a igreja não é?

__ Sim, mas pode ficar à vontade, não tenho pressa.

Dei vontade de partilhar com ele aquilo que pensava. Mas deixemos disso. Seria retórica demais para mim. Saí daquela igreja pensando que um dia meu nome estaria sendo lido, em meio a tantos outros nomes, naquela lista de falecidos. Chata, enfadonha, cansativa, e que ninguém presta atenção, exceto quando a dor da perda nos atinge, e ninguém percebe. Passam indiferentes, esquecidos, desavisados. É triste constatar: a dor do outro a ele pertence. Ficamos só com a nossa, quando ela existe. Triste humanidade desumana essa nossa.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 21/06/2011
Código do texto: T3048618
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