Puta que Pariu
Puta que pariu! Já se passavam das dez da noite quando eu finalmente cheguei a casa, na Rua 13. Era uma terça – feira. Chovia, como chovia. Há tempos que não via tanta água desde aquele infame fim de semana em Glasgow 3 anos atrás. Saudoso 2007... Tantas lembranças estampadas debaixo de um temporal. Boas e ruins é verdade. Mas o que seria de um homem se não fosse a sua memória?
Voltando ao presente, relato o meu infortúnio em chegar totalmente tomado pela lama, da cabeça aos pés, após mais uma aula na Academia Shotaki de karatê. Poucos alunos compareceram para a aula, mas ainda assim tivemos um bom proveito. De 20, somente 5. O ruim seria se fosse os piores, o que me daria mais trabalho, resultando em uma jornada mais longa, o que de longe estava fora do previsto. Mais hoje não seria meu dia de sorte.
A começar pela manhã, quando sou acordado aos berros do telefone que insiste em tocar justo às 3 da matina. Pra atender tal ligação, “só se você fosse médico” já diria minha mãe, do alto de suas experiências em plantões ao longo da vida. Não hei de ser um, pois o ambiente hospitalar em muito me angustia. Especialmente por toda aquela muvuca no ambiente. Creio que não suportaria. Mas sem mais delongas, expliquemos a raiva. Está certo que só fui acordado 2 horas antes do meu horário habitual, mais sono mal dormido o persegue pelo dia todo. Ainda mais se te levantam da cama, pra uma ligação de bêbado, com o cara dizendo:
- Puta que pariu velho... Amo-te pra caralho! Você é meu brodér... Cadê você aqui na festa do Jaime?
Numa mistura entre atônito e confuso, respondo:
- Elias é você?
O silêncio pulula a minha orelha, seguido pelo clássico ruído de chamada caída: tu, tu, tu...
Nessa hora, desligo o telefone da tomada, afinal se ele somente está embriagado, poderá achar o caminho de volta para casa. Especialmente se for o Elias, que já é um veterano de porres, cana e sarjeta.
Volto pra cama, mas não consigo pregar o olho. Apenas, descanso as costas, e duas horas se passam voando. Com um ar ainda meio marejado, me ponho de pé para tomar a primeira refeição do dia. Nada tão pesado que não possa impedir a minha prática diária, na seqüência. Professor tem que estar em dia...
Por volta das 10 horas encerro o treino, e vou caminhando rumo ao ponto de ônibus. Pra variar somente umas três ou quatro pessoas aguardam pela condução. A essa hora a maioria já está no batente. Advogados, mestres, doutores, dentre tantos outros. Pra esses são reservados lugares pra trabalhar, certeza de horários e tudo mais. Se brincar até devem ter carro. Para mim, só me era constante de certeza a companhia das pessoas, naquele ponto até certo ponto calmo da Rua 15 no cruzamento com a Rua 17. Sinal de raridade naquela vidinha de Interior em Granáis. Principalmente na época das eleições da prefeitura. Um trabalho bom pra quem ocupa, mas com tantas responsabilidades que poucos são os doidos a disputarem tal cargo. Nessas horas que agradeço pelos meus alunos...
Por volta 11h e 20m, pego o ônibus Saindo da Velha Luz pro Bairro da Nevada. Daria pra ir a pé, mas a energia tem que ser contada, especialmente quando se rompe a barreira dos 40. Em 1h de viagem chego a Academia, pra pegar a 1ª turma de 13h. Molecada veio em peso, são contados ao todo 30 garotos entre 6 e 16 anos. Mistura interessante de se fazer, pois o que falta em altura e tamanho sobra em vontade e disposição. Especialmente para o pequeno “Tevez”(6) e o futuro “Daniel- san”(15). O baixinho consegue elevar a perna até mais alto que o próprio corpo e possui uma velocidade excelente. Dá pra ver em seus olhos a determinação pra treinar. Já o “veterano”, domina todos os movimentos da cintura pra baixo, além de possuir uma esquiva e contra-ataque perfeitos. Acho que um dia deixo o meu cargo pra ele. Não que esteja velho, mas é sempre bom abrir espaço pra nova geração. Além dessa turma, ainda dou aula às 17h e 19h. Quando fui sair da academia já se via a Lua firme e forte no céu. Por um breve momento.
Trinta minutos. O exato tempo em que admirava o céu antes de cair o temporal. Começou com pingos leves, que aumentaram a intensidade rapidamente. Fui correndo ao ponto pra pegar o maldito do ônibus quando lá cheguei e soube que o havia perdido. Maldição! Em plena terça chuvosa, eu perco a única condução. Dinheiro pra táxi, até tenho, mas não costumo colocar muita fé neles. Especialmente aqui em Granáis, onde eles são seletivos em dias de chuvas e só acomodam quem estiver seco ou com guarda-chuva. Como não sou nenhuma das duas opções primeira, e hoje tenho pressa começo a correr por entre as ruas, debaixo de chuva. Nisso, não dou muita sorte, pois no caminho três carros passam por mim e simplesmente jogam toda a lama pra cima. Tremendo trabalho será pra limpar, mas, dos males o menor o uniforme permanece dentro da mochila multiuso, somente sujo de suor.
Na corrida consigo regressar em 1hora e 40 minutos. Seria um recorde notório pra mim, que há tempos não corria tão rápido, se não por um pequeno grande detalhe: a janela do quarto ficara aberta e a água sorrateiramente invadira o apartamento. Triste dizer que a minha coletânea de vinis fora atingida. Uma perda quase irremediável. É nesses momentos que tenho vontade de quebrar tudo, mas como em geral, sou um cara prevenido, preparei um saco de pancadas na sala pra momentos como este. 3000 chutes e socos intercalados num ritmo frenético servem pra aliviar a dor, mas não remediar o problema. Minha pergunta maior agora é: o que fazer com esses benditos vinis?
Se pudesse levava pra um brechó e dizia pro cara vender pra quem pagasse o primeiro tostão furado. Pena que a chuva tinha feito questão de estragar os coitados a tal ponto que não dava pra recuperar. De 400 discos, apenas 5 ficaram secos. Quase uma tragédia grega. Agora eu aprendo a escutar meus pais quando diziam pra me modernizar...
Mais o que fazer com tanta tralha estragada? A solução lógica seria jogar tudo fora e começar a colecionar tudo de novo. Mas eu não costumo seguir soluções simples, ou porque cargas d’água lecionaria karatê?
Nesses momentos é que preciso procurar os loucos, e nada melhor do que o bêbado da noite passada pra me dar uma ajuda. Ah, não contei mais ele também é artista plástico. Trabalha especialmente com sucata e lixo reciclável. Diacho, chama, chama e não atende. Será que vou...
- Alô?
- Elias?
- Neto?
- Sim. Sim. Recuperado do porre de ontem?
- Caramba, eu te liguei foi? Mil perdões velho...
- Ligou às 3 da matina, na hora em que os monges estão caindo...
- Falei muita besteira?
- Só o trivial “te amo”. E depois desligou como sempre.
- Ah, melhor... Mas diga então o que você manda!
- Então, eu tive meio que uma “tragédia” por aqui ontem com a chuva, que estragou a grande maioria dos meus vinis, e detonou alguns poucos livros. Os vinis agora estão basicamente inaudíveis e os livros postos a secar. Você não toparia usá-los em algum projeto de artes?
- Rapaz, até que não seria uma má idéia... Vais sair de casa agora?
- Por agora não. Hoje estou de folga.
- Ah bom, então passarei aí pra olhar e ver se consigo aproveitar.
- Beleza, então. Valeu e até...
- Até.
Ufa! Não demorou nem um par de horas e estava livre de preocupações pelo dia. O Elias adorou o material e disse que vai usá-lo ainda este mês. O que vai fazer, eu não faço a menor idéia, mas se não fosse por ele, eu nunca teria saído do Brasil, então boto fé. Casa limpa, depois da tragédia do dia anterior. Aproveitar a folga pra mergulhar no cinema. Não que eu vá até um, pra pegar uma matinê ou algo do tipo. Nunca é tarde pra lembrar os ensinamentos do velho mestre, assistindo a clássica versão de Karatê Kid. Até porque essa atual é simplesmente um assassinato a história, uma vez que o moleque aprende Kung Fu, na China! Não que eu tenha nada contra o Jackie Chan, um dos dinossauros da época e grande mestre em artes marcias. Mas se é pra fazer um remake, vamos respeitar as origens, porque senão PUTA QUE PARIU!
Ass: Andarilho das sombras.