A GRANDE SECA / FLAGELO.

A GRANDE SECA / FLAGELO.

Guel Brasil.

Cinqüenta e cinco anos depois, e aqui eu estou para relembrar

com saudades tudo que aqui passei durante alguns anos da minha infância. Lembro-me que para todos os cantos que ia, mamãe, dona Doralice de Jesus, me levava junto com ela; quando ia lavar roupa, ou buscar água nos barreiros, e particularmente eu gostava mais ainda, quando ela ia lavar roupa no “CALDEIRÃO". O Caldeirão era um grande buraco feito não se sabe por quem, aberto num lajedo enorme que tinha em nossas terras, e que se enchia de água nos anos chuvosos.

Era uma água limpa, cristalina, e quando estava cheio, dava pra atravessar o ano. Nos dois extremos da nossa fazenda, tinha um mata-burro e uma porteira; numa delas um nome escrito em português muito ruim, dava nome às nossas terras: "FASENDA AGUAS DOÇE". Cercas de gravatá cercavam todo o entorno de nossas terras, que segundo meu pai, Rogaciano dos Santos, eram terras documentadas e tituladas. Ali nós vivíamos; éramos oito irmãos: quatro mulheres e quatro homens; Raabe era a mais velha das mulheres, ai vinha Josa, Bigail, e Dora; o mais velho dos homens era Durvalino, depois veio Lourenço, Salustiano e eu; nenhum de nós era registrado, e eu nem sequer tinha nome; me chamavam de Usalvim e até hoje não descobri porque. Aqui, nós estávamos vivendo o ano de l952; no inicio desse ano papai tinha feito uma plantação de milho, feijão-de-corda fava e mandioca, aproveitando as chuvas do mês de março. Mas a molhação foi pouca, e os frutos não deram conforme o esperado. O milho só deu uma tamboeira, o feijão-de-corda e a fava, por serem mais resistentes à seca, deram um pouco mais; dava pra atravessar o ano; a mandioca papai ia colhendo aos poucos, e dela fazia a farinha nossa de cada dia.

Papai tinha preparado novas terras para o plantio, esperando que o ano fosse chuvoso; não veio a tão esperada chuva de verão chuva de Embu como é costumeiro se chamar por aqui. Os barreiros já esta-vam secando, e a pouca água que tinha, já não servia nem para os animais; as águas do caldeirão também estavam evaporando muito rápido, e era a única fonte de água potável que se tinha por aqui. Setembro, Outubro, Novembro, Dezembro e nada de chuva; os morado-res já estavam fazendo penitencia pedindo pra tudo quanto era santo, que mandasse um pouco de chuva pro nosso sertão. Mas a chuva não veio.

Era o começo do nosso flagelo; já não tínhamos mais mandioca para fazer farinha; mamãe então tirava fubá do milho e fazia pirão pra gente comer com feijão-de-corda; o tempero era o sal quando tinha; quando não tinha, mãe mandava os meninos buscar na salgadeira de Rochael; eu particularmente gostava, o feijão ficava com gosto de carne. A seca tinha começado, e só Deus sabe quanto tempo duraria. Lembro-me que era começo de ano, por que Rabib, o vendedor ambulante aqui chamado de mascate, bateu palmas no nosso terreiro; todos os anos ele passava, e meu pai sempre comprava alguma coisa; esse ano foi diferente, e meu pai não comprou nada; o que fez foi pagar o que estava devendo do ano passado; ele tinha comprado um vestido de chita pra Raabe que estava ficando mocinha, comprou um vestido pra mãe, alpercatas pras outras meninas, e comprou botinas para os meninos; para mim ele não tinha comprado nada; eu era pequeno e com pouco me vestia.

Como não tínhamos dinheiro, papai pagou o velho turco com duas sacas de feijão de corda, que com certeza nos faria falta seis ou sete meses depois. Foi com a passagem do mascate que eu descobri quantos anos tinha, e dai em diante comecei a marcar na parede do quarto com uma pedra de carvão, a passagem do tempo, em dias; em meses papai me ensinou a contar pelas caras da lua; cada lua cheia era um mês. A seca veio pra ficar; os barreiros de nossas terras secaram, secou também a água do caldeirão, e já não tinha mais água para os animais beberem, e nós tínhamos que dividir com eles a nossa água, que a gente trazia de muito longe no lombo dos jumentos. Pouca criação: quatro vaquinhas de leite, dois pares de jumento, e dez cabras; a água que a gente trazia pra casa, nem fervida dava gosto pra se beber; começaram então a surgir doenças como diarréia e febre-tifo; morria gente aos punhados, principalmente crianças e velhos.

Nossos vizinhos já estavam se retirando pra outros cantos, sem muita direção, a fim de fugirem do flagelo da seca, muitos deles morreram pelo caminho. Foi ai que meu pai tomou a decisão; __"vamos se embora, antes que a gente morra de fome de sede ou com doença ruim." De flagelados da seca, passamos a ser retirantes.

Guel Brasil
Enviado por Guel Brasil em 20/06/2011
Código do texto: T3046636
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