Ninguém Reparou!

Por: Kakal Ragazzi

A multidão passa tensa e apressada. Na rua larga, milhares de automóveis, sinais e o barulho ensurdecedor das buzinas e alto-falantes. O sinaleiro fecha e crianças pulam em um único impulso na frente dos carros e caminhões. Alguns começam a lavar os pára-brisas e os demais fazem malabarismo com bolinhas na faixa de pedestres. Cada qual com sua função já determinada, num lapso de momento, todos com as mesmas preocupações lembram-se do medo de chegar em casa sem dinheiro, pior ainda é apanhar dos pais alcoólatras e dormir sem ter o que comer. Escola e brinquedos nunca foram vida e sim utopias do cinema, que eles nunca conheceram. A luz verde acende, os motores roncam e as únicas coisas conseguidas foram incontáveis palavras espantosas que formam um novo dialeto de horror. Ninguém reparou!

Em meio aos produtos falsificados e até mesmo roubados, o vendedor grita que na sua tenda tem promoção, o outro retruca mais alto ainda que aquele lugar na calçada é dele. De repente vêem-se socos para um lado, pontapés para o outro e até mesmo um canivete saindo debaixo da camiseta furada que tinha o emblema da bandeira. Então, seus olhos estão estáticos, sente-se o sangue correndo ladeira abaixo e só se escuta a sirene ao longe, bem ao longe, tentando se aproximar por entre as vielas imundas. Ninguém reparou!

Aqueles velhos estão sujos e descalços, deitados na sarjeta da rua principal. Está ventando e eles estão trêmulos, cobertos com jornais velhos numa tentativa frustrada de aquecerem seus corpos. O pequeno pedaço de pão duro que ganharam na padaria da esquina é repartido entre todos. Os cachorrinhos abandonados, doentes e famintos os fazem companhia em um ato de compaixão, ou mesmo em troca de um pouco de carinho e atenção. As lembranças e histórias de uma vida não vivida é o que os conforta. Ninguém reparou!

Entardeceu, é hora de ir embora. Todos se acotovelam, espremem, apertam, e se esculacham tentando conseguir um lugar no ônibus lotado. Os olfatos se perdem em meio a tanto cheiro de suor, de fofoca, de angústia, de desigualdade. Os portões das casas já estão trancados com grandes e fortes cadeados. Em frente a algumas janelas nota-se que, mesmo que alguns barracos tenham sido destruídos pela enchente, exatamente todos estão assistindo a novela das oito. Ali no beco, atrás de todo aquele lixo espalhado, adolescentes fumam, bebem, traficam e tramam juntos inimagináveis atrocidades.

Dentro do carro importado, o pequeno príncipe mimado, por apenas um instante olha por trás dos vidros fechados e vê uma paisagem surreal. Assustado, ao descobrir que há outra realidade atrás de suas riquezas e regalias indaga curioso: "O que é isso tudo pai?", o poderoso homem responde num tom irônico: "Não é nada filho!". Ninguém reparou!

A noite chega, os jardins de lírios e petúnias estão apenas nos livros que um dia viraram pólvora de canhão. A música tocada na harpa dos deuses não pode ser ouvida porque os gritos terrestres são mais fortes e incessantes. A lua, com toda a sua imensidão, brilha no céu formando um belo espetáculo junto às estrelas. Não é possível vê-las porque estão cobertas por uma extensa camada de poluição que é feita não somente de sujeira, mas principalmente de humanidade. Em meio à multidão, mais uma vez o mundo se perdeu e ninguém reparou!

Kakal Ragazzi
Enviado por Kakal Ragazzi em 20/06/2011
Código do texto: T3046600
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