O despertar de Alice

Dizem que a cada despertar de uma alvorada, somos contemplados com uma nova possibilidade de reescrevermos o livro de nossas vidas. Para Alice, essa afirmativa era quase que crença irrefutável, um dogma divino a qual não se cabe questionamento ou ponderações vulgares, à nossa parca concepção racional. Alice, como em todas as alvoradas recolhia do chão as sobras de seu ser, os cacos que desprenderam-se durante a fria e solitária madrugada, qual flagelou seu pensar.

Algo naquela branca manhã de outono não se comportava de forma apropriada, seria a luz, a se entrelaçar às copas das árvores num bailar faceiro entre as preguiçosas horas do solstício? Seria a brisa que acariciava com dedos gélidos sua carne pura e macia? Seriam as lembranças das desventuras passadas quais impregnavam sua mente com imagens ferrenhas e sentimentos ferinos? Ou ainda o calar repentino do saudoso canto das aves? Tais especulações pareciam resistir à luz de sua razão.

A jovem mulher não conseguia distinguir com precisão a realidade que a cercara, das insólitas figuras quais irrompiam às barreiras quase que membranosas de da fantasias geradas por sua mente. Ao lado de seu leito, bem ali ao pé da cama repousava um objeto imóvel, o qual não se assemelha com nenhum outro que antes ali estava depositado. Sua janela entreaberta convidava o vento frio e ruidoso a entrar vagarosamente obrigando as cortinas a participarem de uma dança irregular e silenciosa, espalhava em seu reduto feminino o olor das perfumarias quais já faziam pareciam emanar de seu belo corpo juvenil. Lá fora um alvorecer tristonho se dobrava sobre o jardim de begônias e orquídeas secas, árvores despidas do verde, um jardim que renunciava lentamente à vida.

Alice não sabia o que deveria fazer levantar? Tentar volver ao sono e recuperar a consciência empós? Encontrava-se atônita ante a estranha figura que repousava pacificamente estendida sobre o chão de seus aposentos. Perplexa a menina tenta levantar-se vagarosamente, para que num cuidadoso e súbito movimento pudesse se esvair dali a procura de alguma razão. Irrompera cuidadosamente em um salto de sua cama em direção da porta e a abriu, essa não se opôs de nenhuma forma ao comando da jovem, porém obedeceu rangendo um lamento vagaroso, por trás do solícito corpo de madeira, encontrava-se nada mais que uma densa e maciça parede -- O que significaria isso? – Interrogou o vazio assustada, não poderia de nenhuma forma ser real. Movida pelo assombro, rumou em direção a janela atrás das cortinas bailarinas, a abriu depressa enquanto fechava os olhos e como um gato lançou seu corpo para o exterior.

Sentiu um pesado impacto sobre seu dorso, qual a fez concluir que chegara ao solo, permaneceu ali por algum tempo com os olhos fechados, sua mente agora já se encontrava totalmente desperta e essa estranha manhã já lhe trazia emergida em medo. Decidiu abrir os olhos lentamente, deixando a luz amena invadir suas retinas, aos poucos foi reconhecendo as formas que a cercara, com os olhos totalmente abertos e cheios de alarme, sentiu-se tomada por estranhas sensações ao perceber que estava estirada sobre o frio chão de seu quarto. Envolta pelo obscuro manto da confusão, tentou lançar-se novamente à janela, uma, duas, três vezes... Sempre obtendo o mesmo resultado.

Assustada proferiu algumas palavras, a fim de emitir seu horror àquela situação incomum. Voltou sua atenção para as coisas a seu redor, talvez a procura de algo que pudesse explicar tamanho desvario, tudo estava como deviria, exceto a inanimada figura alocada ao lado de sua cama. Chorou e gritou esperando alguém vir a seu socorro, nada adiantou, até parecia que ela, o quarto e a pintura viva de uma janela eram as únicas coisas existentes, lá fora nenhum sinal de vida a manha se fazia mais cinza, a brisa mais fria e as flores mais mortas, um imenso campo no tom marrom se estendia até tocar o céu na distante interseção do horizonte.

Lembrou-se do telefone e rapidamente se dirigiu a ele, em seu lugar apenas o vazio, -- Seria possível? Um sonho talvez? – Sem nenhuma alternativa, reparando que o objeto ainda se encontrava ali imóvel, avançou sobre o mesmo, percebeu o pequeno rio rubro que brotava daquele corpo inerte, com cautela se pôs a examinar a figura, reconhecendo-a, era um cadáver, uma pessoa, mas quem seria? Os longos cabelos castanhos dificultavam a visualização de seu perfil, porém a bela silueta lhe era extremamente familiar, aproximando-se horrorizada do ensanguentado pedaço de carne, se pôs ao reconhecimento da mulher que dormia pacificamente, sem emitir nenhuma sonoridade, Alice dominou o temor e decidiu mudar o decúbito em que a mulher descansava, ao se deparar com sua face entregou-se ao desespero, ali naquele chão estava Alice inerte abraçada ao derradeiro e eterno sono.

Gritos jorravam com esforço de sua garganta, enquanto banhava-se com seu próprio sangue, em meio aos seus bramidos ouviu o cantar da porta qual abria lamentosa atrás de si, ao voltar os olhos em sua direção se deparou com a enfermeira que lhe trazia sua medicação diária adentrando em seu quarto de paredes mortas em tom de cinza, a mulher lança um olhar de desapontamento sobre Alice, fazendo-a tomar seus remédios, a menina olha em volta relutante contemplando o vazio de um quarto de hospício em que não se achava nada além dela, uma enfermeira, sua cama e o feraz desvario de uma jovem consumida pela insanidade, soluçante se pôs a dormir.

Rio de Janeiro, 12 de junho de 2011.

Well Calcagno
Enviado por Well Calcagno em 19/06/2011
Código do texto: T3044309
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