A ALCOVITEIRA E O CÍNICO
 
A cara, em si, nada diz  do seu passado. Expressa  agora, por assim dizer, fé inquebrantável, aquela fé que move a todos os visionários a quem se julgam ter o Senhor os ungido seus únicos e prediletos eleitos. Hoje, veste  tons invariavelmente fechados admitindo, entretanto, nalguns, flores salpicadas; nas ruas, véus rendados cobre-lhe a cabeça quando não os ombros; pelas mãos, frequentemente o terço com o Cristo crucificado. Cabelos longos traze-os presos  enquanto os passos seguem firmes e olhar severo como a mantê-los distante dos pecados mundanos. Assim, é  Emerenciana, a quem há muitos anos  presenciei chamarem-na “alcoviteira!”; e, ante sua fria indiferença gritaram em coro: “alcoviteira!” “alcoviteira!” até aquela futura inimaginável Madalena desaparecer rua afora; a julgar, levava  intacta toda sua pretensa altivez. 
Alcoviteira? O que seria alcoviteira? Aquilo nada significava para mim, menino desprovido de malícia e de conhecimentos. Intuía, no entanto, não ser boa coisa.
Meses se passaram. Agora matriculado no GE Henrique Silva, via-me adentrar por seu portão central. A parte frontal do prédio consistia numa edificação pintada de amarelo ocupando toda frente do lote; um espaçoso portão principal permitia a entrada em suas dependências, ladeado à esquerda pelas ocupações da ala administrativa; por outro lado, vitrôs retangulares das salas de aulas chamavam a atenção pela robustez de suas grades. Estas salas se estendiam ao limite do muro onde localizava outro portão menor à sombra de generoso "ficus benjamina". Pela ampla calçada os piroliteiros proclamavam: "Olha o pirulito enrolado no papel e espetado no palito, quem não comprar fica feio, mas quem comprar fica bonito"! Transitavam aos gritos por entre a banca do quebra queixo e a carroça do geladinho. Tempos difíceis. A quem era dado o privilégio de uma moeda, tudo bem, dava-se ao prazer das guloseimas; aos menos abonados ficava a opção do laxante leite oferecido pela Aliança Para o Progresso, programa de ajuda humanitária segundo o governo americado, na forma de leite em pó diluído e distribuído aos alunos das escolas públicas.
Um ano se passara ali sem transtorno ao custo de rígida disciplina até chegar aquele aborrecido dia. Fui levado à Diretoria daquele saudoso estabelecimento de ensino Campineiro para responder perante a Secretária por "modos impróprios" dentro à sala de aulas. Eufemismo que ela dera a simples peraltices infantis.

Sentado, os pés não tocava o chão. Frente a frente estávamos eu e a Secretária da Diretoria: mulher corpulenta, loura, cara marcada por algumas velhas bexigas, sinais supostos da varicela mal curada a lhe dar aparência de maior rigor e antipatia.
Na cândida inocência da meninice, não fazia idéia do sermão que, a priori, veio moderado. Ria. Ria sim! Eu ria, porque pouco fazia ou entendia daquela encenação, vindo com isso provocar mudanças na voz e postura da Secretária bexiguenta.
“Deixe de cinismo!” Ela pediu flagrantemente alterada.
Não amedrontei; julgava ser parte da comédia presente.
“Cínico!” Disse-o de tal forma enfatizando o “cí” que a levava a pronunciar um silvo longo deveras risível. Então, ria melhor ainda.
“Cínico!... você é muito Cínico!” Vinham a mim os silvos e os brados da mulher agora furiosa, alertando-me o entendimento a reconhecer que não era boa coisa, a exemplo do que acontecera com Emerenciana.
Cínico? --- pensava --- o que isso queria dizer? E alcoviteira? Emerenciana seria cínica? E eu, seria também alcoviteiro?
Eram dúvidas que uma mente infantil dificilmente entenderia, mas que eram risíveis, isso lá, era!