ADORNOS, FITAS E BABADOS
Eram dois Carlos. Iguais no nome e na idade. Diferentes na sorte.
O primeiro nascera sem qualquer adorno, fitas e babados. Viera ao mundo no interior de uma viatura policial. Sua mãe saíra de casa às pressas para tentar impedir que seu marido participasse daquele assalto. Temia pela vida dele, temia por ela própria e pela criança que estava esperando. Chegara tarde ao banco. A polícia já havia desbaratado a quadrilha e o saldo desta operação fora cinco integrantes presos, três feridos e um morto. Seu marido jazia no chão, inerte com três tiros na cabeça. Dera um grito de horror, de medo, de angústia, de desesperança que ecoou no ar como um pedido de ajuda. Policiais que estavam por perto socorreram-na. Estava abalada emocionalmente e já sentindo as dores no parto. Os policiais fizeram o possível, mas o trânsito os impediram de chegar até o hospital e a criança nascera ali mesmo, no banco de trás da viatura policial, sem qualquer cuidado, sem médicos e enfermeiras, sem adornos, fitas e babados.
O segundo Carlos nascera como haviam programado os médicos e seus pais. Nascera numa linda sexta-feira, de muito sol. Viera envolto em muitos adornos, fitas e babados. Sua mãe não teve outra preocupação durante a gravidez a não ser cuidar da decoração do seu quarto e de seu enxoval. O pai viera do exterior para filmar o parto. Uma grande festa fora preparada, regada a muito uísque importado e charutos cubanos. Membros da família e amigos chegavam a todo momento à mansão trazendo presentes para o pequeno e já ilustre Carlos.
O primeiro recebera o nome de Carlos Alberto da Silva. Carlos Alberto era o nome do protagonista de uma novela que a mãe assistira há muito tempo, mas que não se esquecera jamais. Seria Carlos Alberto e, quisera Deus, tivesse a mesma sorte do personagem: ser honesto sempre, em qualquer situação, trabalhar e ganhar muito dinheiro, encontrar um grande amor, casar-se e ter filhos, ser feliz. Era isso o que a mãe desejava àquela criaturinha indefesa. Mas, morando ali na favela, com toda aquela falta de recursos, toda aquela miséria e toda aquela carência, pensava que talvez a sorte de Carlos Alberto fosse outra, bem diferente da vivida pelo personagem da novela. Talvez o garoto se envolvesse com pequenos crimes, com drogas, com traficantes. Talvez fosse preso, enviado para alguma dessas Instituições para recuperação de menores e morto numa dessas rebeliões onde queimam-se colchões, torturam-se os reféns e a vida vale muito pouco ou nada. Não queria mais pensar nisso. Afastara os pensamentos tortos e começara a rezar.
O segundo Carlos, recebera na pia batismal o nome de seu avô, Carlos Eduardo Albuquerque de Mendonça Neto. Fora assim decidido por tratar-se de um costume familiar. Os pais já traçavam o destino do filho. Seria feliz certamente, teria de tudo, estudaria nas melhores escolas, teria os melhores amigos, todos eles com aqueles sobrenomes imponentes de quem já nasce cercado de adornos, fitas e babados. E, quando menos se esperasse, o pequeno Carlos quadruplicaria os bens da família. Sempre fora dessa maneira. Não havia muito o que planejar - seu futuro já estava traçado - pensavam os pais.
Os dois Carlos crescem. Contam agora dez anos de idade. Ambos nasceram no mesmo dia; no dia em que Carlos Alberto perdia o pai durante um assalto; numa sexta-feira ensolarada em que o pai de Carlos Eduardo chegava do exterior para presenciar seu nascimento. Ambos nascem Carlos mas ambos vivem Carlos diferentes.
Enquanto Carlos Eduardo mantém uma rotina atribulada entre a escola e vários outros cursos e esportes, Carlos Alberto não freqüenta a escola, vende chiclete nos semáforos para ajudar sua mãe e convive com a violência no morro; tiroteios e balas perdidas ou até mesmo com destino certo.
Carlos Eduardo trilha por uma educação que, conforme seus pais, o levará a ser um grande homem. Carlos Alberto trilha pela linha de fogo dos traficantes e não sabe se chegará, sequer, a ser um homem.
Carlos Eduardo diz: “Obrigado, senhor...”; Carlos Alberto diz: “Valeu, tio...”.
Carlos Eduardo não sabe o que é passar fome. Carlos Alberto não sabe o que é comer bem.
Carlos Eduardo usa roupas de grife. Carlos Alberto usa roupas rotas doadas pelas Instituições de Caridade.
Apenas uma avenida separa o condomínio de luxo onde vive Carlos Eduardo do morro íngreme onde mora Carlos Alberto. Um não sabe da existência do outro, mas, a vida se encarregará de delinear o destino de ambos. Com adornos ou sem adornos, com fitas ou sem fitas, com babados ou sem babados. E, como destino não é ciência exata, ambos correm os riscos de se viver. Ser na vida Carlos iguais ou Carlos diferentes, mas ser Carlos.