Quadris de Mola - Homenagem¹
Dos chinelos carcomidos que serviram de estímulo para dentes que, de ferozes só mesmo a aparência, guardo apenas a lembrança. Lembrança do cheiro de banho recém-tomado e dos perfumes dos homens da casa, usados em abundância para envaidecer seus pelos loirinhos.
Não enxergávamos os cabelos claros cobrindo nossas roupas que acreditávamos estarem limpas, assim como todos os cantos da casa. Casa que ele tomou para si, como todas as camas, cobertores e sofás que serviram de aconchego durante as horas de sono e preguiça.
De quantas maneiras sentiremos a saudade plantada eternamente no jardim de nossos corações? De quantas maneiras nos lembraremos dos buracos feitos nos vasos e recantos de terra cuja sujeira, estampada em seu focinho gelado, cobria-lhe a vergonha da peripécia faceira.
Suas piruetas atrapalhadas e desprovidas de qualquer senso de educação deixavam em minha pele branca as marcas de seu amor incondicional. Não mais terei roxos em minhas pernas, mas para sempre desejarei cobri-las de manchas e arranhões.
Rebolando seus quadris de mola, você se dobrava em dois em todas as chegadas ao longo do dia. Já nas partidas, seus olhos eternos desfocavam-se para o lado, pois sabiam que não seriam levados a lugar algum. Mas você foi por si só. Aproveitando-se de alguma distração, fugia de seu pequeno mundo e misturava-se ao cheiro da rua.
E de quantos nomes foi chamado e quantos gritos você ignorou, enquanto corria displicentemente pelos passeios alheios, sentindo na língua ofegante o sabor da liberdade, mesmo que por poucos minutos.
Você se multiplicou e para muitos se doou com toda doçura de seus gestos de moleque. E quando a solidão enegrecia nossos dias, você se aconchegava em nossos colos, se achando gente. Gente grande, menino travesso e especial, como só os amigos do Homem sabem ser.
Comerei um pão-de-queijo por você, mesmo sabendo que no seu caso, um saco cheio de pães-de-queijo seria o mais adequado. E por você soltarei foguetes no céu de estrelas e correrei para o quarto na esperança de enxergar uma patinha esquecida para trás, enquanto o resto do corpo, espremido em baixo da cama, tentava se proteger dos estrondos do foguetório.
As coleiras corroídas ficarão penduradas nos quintais de nossas moradas futuras, e as pequenas travessuras, gostosas brincadeiras com bolinhas e correntes, ossos de mentira e garrafas de refrigerante, sacos de lixo revirados à procura de pão, serão sempre lembranças de felicidade. Mas o que dizer da dor então?
Fomos tão felizes, mas o problema é que a felicidade não suporta uma separação ...
¹ Esse texto é um carinho que faço a você, Boris Junior, um cão brincalhão, medroso e fujão, que me ensinou a amar mais e melhor.