INFARTO

Ainda sinto-me debilitado essa manhã. Minhas forças estão se esvaindo.

Há décadas me levanto quando o dia teima em chegar e a noite reluta em partir. Sempre gostei de acordar bem cedo, pois somente assim tenho a ilusória sensação de estar prolongando o meu dia. Por essa mesma razão, vou dormir bem tarde, para poder aproveitar cada minuto. Dormir, para mim, não é tarefa fácil. Perde-se muito tempo enquanto se dorme. E, não queiram me convencer de que "o organismo humano necessita de seis a oito horas de sono para se recompor". Balelas! Dormir é improdutivo.

Preparo meu café da manhã e vou ingerindo-o rapidamente enquando passo os olhos ávidos e ligeiros pelas principais manchetes do jornal e acabo me deparando com as letras garrafais da página econômica, que é o que sobremaneira me interessa: cotações do dólar, taxas de juros, cotações da Bolsa de Valores, a economia brasileira, a economia mundial etc. Tais assuntos exercem verdadeiro fascínio sobre mim, impregnam-me, dão-me um prazer quase doentio. É uma gama enorme de informções para absorver em pouco tempo. E pensar que há pessoas que raramente lêem um jornal e, se o fazem, é para ler horóscopo, fofocas do mundo artístico e outras futilidades. Eu não! Sou ocupado demais para perder meu tempo com banalidades. Estar bem informado é primordial para o bom desempenho do meu trabalho, porém, retenho apenas o que me convém.

Raramente vejo meus empregados devido aos meus horários. Prefiro assim. Saio bem cedo de casa, mesmo sabendo que ficarei horas preso no trânsito. O som das buzinas penetra meu cérebro e destrói impiedosamente o meu humor. Aliado ao som das buzinas está o som das batidas no vidro do carro. São crianças maltrapilhas que querem vender chicletes, chocolates, água, refrigerante etc. Mantenho o vidro fechado - essa movimentação me estressa. Aproveito esse fatídico episódio e ligo para minha secretária para repassarmos os compromissos do dia. Agenda lotada como sempre. São tantos os compromissos, reuniões, visitas, viagens, fechamento de contratos, clientes, fornecedores, assinaturas, telefonemas indo e vindo... Pego-me com a mão atolada na buzina. E o relógio, esse meu inimigo mortal, trava uma luta psicológica comigo. Não posso medir forças com ele, já que minhas armas são ineficientes para o combate. Aceito portanto, com resignação, mas sob protesto, minha impotência ante seu poder.

Na empresa, nada se move sem o meu consentimento. Não permito. Sempre estou atento a tudo e a todos. Nada passa despercebido. Sei que muitos me acham centralizador. Eu me acho eficiente.

Não tenho o hábito de almoçar, isso é pura perda de tempo. O tempo do meu almoço pode ser fundamental para a concretização de um ótimo negócio. Um lanche rápido ou uma fruta é mais do que suficiente. Comer é vício. Fome é psicológico. Eventualmente almoço ou janto com um cliente e, me disponho até mesmo a acompanhá-lo a um "happy hour" ou uma "badalação noturna", obviamente se eu puder tirar algum proveito da situação. Afinal, o lucro é o que importa. Importa estar no topo. A empresa cresce. Eu sou a empresa. Logo, nós crescemos!

Nunca me queixei de trabalhar, muito pelo contrário, amo meu trabalho, aliás, "meu trabalho" é tudo para mim. Meus amigos dizem que sou um "workaholic" (viciado em trabalho). Amigos! Ora, que amigos? Refiro-me a alguns "colegas" de trabalho que num momento de rara descontração fazem observações vis como essa. Com relativa constância, vejo funcionários cochichando pelos cantos quando eu passo e, vez por outra, ouço comentários do tipo: "Ele é sério demais, sisudo e antipático!"; "Talvez seja por isso que nunca tenha se casado. Que mulher suportaria viver com um homem tão egoísta?". Nunca me ative a esses burburinhos de escritório. Nunca tive tempo para tal.

Férias? Nem pensar! Jamais conseguiria descansar ou me desligar dos meus afazeres em função de um capricho. Férias é para quem não tem o que fazer. É preciso trabalhar para se sentir vivo, desenvolver projetos para se sentir capaz, ter sucesso para se ser.

Foi por meio do meu trabalho que realizei meus sonhos e me realizei. Trabalhando e realizando, realizando e querendo mais, querendo e conquistando, conquistando , conquistando... Não, não me peçam para descrever qual o sabor da conquista, pois não saberia expressar corretamente com palavras o imenso prazer que um boa conquista proporciona.

Hoje tenho o que mais almejei na vida: dinheiro e sucesso e, acabo de travar uma nova luta, um novo desafio para a minha vida. O relógio, meu inimigo mortal, já não me assusta tanto. Aqui, o tempo é subjetivo e não é contado por horas, minutos, segundos... Não sei que horas são e qual o dia da semana. Minha batalha agora é com as paredes pálidas deste quarto, com o som que já não é tão ensurdecedor quanto o das buzinas, é o som do silêncio do lugar quebrado pelo som entediante que vem do aparelho ligado ao meu coração.

A porta se abre. Tenho uma visão: é um anjo trajando branco da cabeça aos pés. Será que morri? Não! É apenas a enfermeira que veio monitorar os aparelhos e me dar mais uma daquelas injeções. Infarto! Que ironia. E eu, justamente eu, aqui, imobilizado.

O médico que me atendeu fez uma série de recomendações e restrições, as quais, segundo ele, deverei seguir à risca.

Imaginem vocês se vou me intimidar... De forma alguma! Já tenho planos concretos para quando sair daqui: vou trabalhar muito e triplicar o meu patrimônio.

Se me perguntarem para quem deixarei meus bens quando morrer, responderei seguramente que eu não vou morrer. Não tenho tempo para isso. Estarei ocupado demais quando a morte chegar!

Nesse momento um sono incontrolável se apossa de mim... minhas forças estão se esvain...

Silvana Moreli
Enviado por Silvana Moreli em 18/06/2011
Código do texto: T3042757
Classificação de conteúdo: seguro