Bruxo

Saí de casa oficialmente atrasado e amaldiçoando mental e verbalmente – solilóquios resmungantes à La Mutley - a minha falta de métodos organizacionais com meus horários, roupas, tênis, cremes, perfumes, cuecas, toalhas e etc. Aí um carro pára atrás de mim e alguém diz:

- E aí, vagabundo?

Olhei, e era o Bolívia.

- E aí, mano?

- Tá indo pra onde?

- Pro Metrô...

- Mas você vai até aonde?

- Até a Paulista...

- Sobe aí, vou passar por lá.

Dei a volta no carro, todo sorridente, abri a porta, joguei o kimono dele pro banco de trás, sentei, fechei a porta e lhe estendi a mão.

- E essa faixa azul aí, hein?

- Peguei tem um tempinho, já...

- Da hora, hein? Ryan Gracie e tudo!

- É, os meninos lá são bons, mesmo – ele também estava gripado e passando raiva com fungação de nariz, e cada frase nossa saía levemente pausada por uma fungadinha básica – E você, tá treinando ainda?

- Nem... Tô há quase 1 ano e meio paradão. Ultimamente eu ando pagando academia pra não ir; otário, mesmo.

- HAHAHAHA

Me deu um pouco de preguiça na hora. Pela minha inaptidão em manter diálogos com semi-conhecidos. Eu costumo me odiar em tais situações. Mas a conversa foi tomando um rumo agradável, passando por treinos e nomes conhecidos (por ele, devo ressaltar) e do Jiu jitsu, sobre nossos empregos, sobre o filho dele e sobre música. Eu, sentado e ainda com o cabelo molhado, contemplava os pontos de ônibus cheios ficando pra trás.

- Cara, que horas você entra, mesmo? – Ele me perguntou.

- Nove.

- Então você ia chegar atrasado, é isso que eu entendi?

- HAHAHAHAHA pra caralho! – Enfiei um toco de papel higiênico no nariz e fiquei passando ele até a porcaria ficar seca – Porra, se você me deixar aqui, eu já chego na hora de boa; carro é foda, é outra pegada.

Eu falei isso e o trânsito parou.

Os motoqueiros passavam pelos estreitos corredores tranquilamente.

- Ó – indiquei-os com a cabeça – esses daí nem sofrem.

O Bolívia ficou quieto por alguns minutos. Depois falou, meio tenso:

- É... – Acelero um pouco, fungando – Eu normalmente vou pela Marginal, e, cara, é um saco cinza por dia largado lá.

- É mesmo – respondi, reticente, imaginando motoqueiros voando e se chocando de cabeça em paredes e postes e caçambas de caminhões; motos com as rodas tortas e tanques furados com iminentes explosões no gatilho.

- Cara – ele continuou – são cem mortes por dia. CEM! Tem mais baixa que uma guerra, por exemplo.

- Foda...

- O pior é que eu tenho a maior vontade de ter uma motoca, Mocotó.

- MOCOTÓ! HAHAHAHA

Daí ele começou a monologar sobre uns parentes multitalentosos e eu só fiquei ouvindo e me sentindo a pior pessoa do mundo pra conversar, como sempre, sem uma história decente de família pra contar, sem nada de louvável em relação à emprego; sem nenhum projeto de vida que valesse a pena ser citado, enfim – mesmo por que tal projeto não existe -, a bosta de sempre, que faz da misantropia o meu sustentáculo-mor.

O trânsito voltou a fluir normalmente e ele falando de um cantor aqui, de um ator ali, de um poeta acolá e eu só respondendo: eu nunca ouvi falar. Não só respondendo assim, eu variava com “não conheço” e com “só conheço de nome”, também. Até que ele perdeu a paciência:

- Caralho, você não conhece ninguém, sai do meu carro, não quero mais conversar com você! – e riu.

Rimos.

Ele me deixou diante da entrada da Estação Paulista e tomou seu rumo. Eu, meia hora adiantado no horário. Me enfiei na tal Estação, mais para conhecê-la, e de tantas escadas descendo e de corredores e túneis e curvas, imaginei que sairia em Shangai. Entrei num trem vazio e desci duas estações depois, ainda cheiroso e com as pernas bem descansadas e sem nenhum infortúnio matinal pro currículo.

Lá pelas nove e meia eu saí do prédio, atravessei a Paulista e me posicionei no ponto de ônibus, pra ir na Sé resolver umas paradas. Um ônibus veio e eu entrei. Fiquei dez minutos dentro dele, sem ele ter andado dois metros sequer. O pessoal começou a ficar impaciente e se aglomerou em volta do cobrador, reclamando do prefeito, da cidade, do trânsito e da porra toda de sempre. Eu pedi pro cobrador pedir pro motorista abrir a porta e desembarquei e desci a Brigadeiro andando. Ela estava TOTALMENTE parada. Alguma merda tinha acontecido, só podia... Desci mais um pouco e foi dito e feito: ambulâncias do Resgate, juntamente com viaturas da PM, fecharam a avenida, sob o Viaduto Treze de Maio. Uma cambada de curiosos se aglomerava diante de um Resgate. Na avenida, um caminhão com a frente amassada e, no chão, jazida e escangalhada, com as rodas tortas e vertendo óleo e gasolina, uma moto.

Segui meu caminho, me sentindo um bruxo.

Me sentindo um bruxo.

Me sentindo um bruxo.

Um bruxo.

16/06/2011 – 18h37m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 16/06/2011
Reeditado em 16/06/2011
Código do texto: T3039079
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