Dr. Google

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O tempo dos trabalhos acadêmicos ralados, feitos no braço, causa certa perplexidade nos alunos modernos. Talvez não estejamos muito distante da época das provas virtuais, sem caneta, sem tinta, sem presença – quiçá chegaremos ao estágio das provas sem alunos! Será o período dos virtuais-reais, dos fantasmas acadêmicos que aparecerão apenas para receber o diploma de um curso feito de aluguel, não tão bem pago por causa da concorrência – em razão do grande número de copistas –, mas que servirá... Quem sabe não surjam cursos de excelência como, verbi gratia, o de especialização em imunização de madeira! Já imaginou ter que estudar horas a fio e, ao final, sagrar-se especialista em madeira? Os homens moderninhos adorariam essa profissão!

Seremos provetados e alugados em nosso processo ensino-aprendizagem e ai daquele que se apaixonar por seu placebo! Afinal, para que servem mesmo os homens durante a gestação? Basta um vidrinho contendo de 60 a 150 milhões de zoidinhos por mililitro, uma boa dose de grana, e pronto: nasceu a criança! Homem não amamenta, raramente troca uma fralda de modo eficiente, não sabe cantar músicas de ninar – se você souber alguma, além da atualíssima boi-da-cara-preta, favor enviar-me por e-mail!

Por falar em paixão, estão clonando bate-papos filosóficos! Isso mesmo! E não é coisa do outro mundo, não... É molinho!

Outro dia, enquanto teclava com um amigo meu no MSN, ele começou a me mandar trechos de um diálogo com uma pretendente – pretendente dele, tá! Fiquei deveras encantado com a versatilidade da moça. Era de um encantamento bárbaro. Ela transitava com leveza e maestria entre o antiquado e o moderno; entre o cubismo, o concretismo, o futurismo; sabia o significado de niilismo, maniqueísmo e outros ismos que pagam o ingresso. Entendia de Freud e de Jung – divergindo, inclusive, do meu amigo em relação a pontos nevrálgicos das discordâncias existentes entre os dois pensadores.

Curioso igual a menino que tenta dormir em véspera de Natal, esperando o bom velhinho que nunca vem, pedi o MSN da senhorita!

Ele mo deu, depois de algumas ressalvas e aconselhamentos (coisas de homem que teme o adversário, sabe como é, né?), e lá fui eu invadir o exorbitante mundo intelectivo da simpaticíssima jovem:

– Bom dia, moça! Tudo ‘bonzinho’ com você? Tudo na paz e tranquilo como brisa noturna em varanda de casa de praia?

– Quem é você, posso saber, moço? – foi a resposta.

– Sou o amigo do Rincauto, conhece?

– Ah, sim! Ele me falou mesmo que um amigo dele ia me convidar...

A partir da quebra de gelo, o papo fluiu suave e naturalmente. A cada nova investida, ela me enviava letrinhas repetidas que no meu parco entendimento significavam que a mocinha estava sorrindo, dando gargalhadas ou outras faceirices do gênero. Levando em conta o que aprendi com outro amigo: para sabermos, nós homens, se estamos agradando uma mulher com nosso joga-fora, basta usar o sorrisômetro, ou seja, quanto mais sorriso maior a aceitação. Creio que numa escala de 0 a 10 eu estivesse beirando os 9!

*..*

– Fiquei interessado em você porque também gosto de arte, música e de Freud.

– Prefiro Jung. – Foi a resposta.

– Mas ele não era discípulo de Freud?

– Quem disse isso?!

Pela rapidez com que me respondeu, fiquei assustado. Talvez, se estivéssemos muito próximos, eu tivesse levado um chega pra lá, um safanão...

– Jung preferia entender as pessoas a partir da saúde delas e gostava de libertar os doentes da psicologia que Freud colocava em cada página de suas obras. A psicologia de Freud é uma psicologia de um estado neurótico de determinado cunho e, por isso, Freud é verdadeiro e válido, mesmo quando diz uma inverdade, pois também isto faz parte do quadro geral e traz a verdade de uma confissão. Mas não é uma psicologia sã – e isto é sintoma de morbidade – baseada numa cosmovisão acrítica e inconsciente, capaz de estreitar muito o horizonte da visão e da experiência. Foi um grande erro de Freud ter ignorado a filosofia. Jamais critica suas suposições, nunca questiona suas premissas psíquicas...

Não sei como se interrompe um rompante cibernético, mas a mulher ia jogando as coisas na tela e aquilo ia me assustando mais ainda. Sem comedimento, pus-me a digitar pontinhos na tela até não ver mais nada do que ela digitava. De repente:

– Que foi, moço? Não gosta de saber da verdade, não? Não aceita ser contrariado, é?

– Calma, moça! – respondi. – Queria apenas respirar! Você jogou tudo assim de uma vez que me assustou. Suas palavras possuem mais energia que as Cataratas do Iguaçu depois de dia de chuva intensa. Nem mergulhador com excelente apneia sobrevive a uma rajada dessas!

– Fiz curso de digitação, ora! Não fico catando letras pra digitar. Sequer olho para o teclado quando estou digitando, tá!

(Poxa! Essa é boa mesmo!) – essa e outras exclamações me invadiam o atormentado íntimo. Afinal, eu estava levando uma surra intelectual que me doía até a inderrogável prega rainha.

Sem que eu perguntasse mais nada...

– Jung considerou restrita a visão de Freud sobre a vida mental, fundamentada na sexualidade. Considerou que os conceitos freudianos abarcavam apenas uma parte da vida mental. Freud, assim, teria ficado restrito ao estudo das neuroses no âmbito do inconsciente individual. Jung, além do inconsciente individual, constatou a existência do inconsciente coletivo, resultante de repetidas experiências comungadas na aurora do homem. Consequentemente, a análise dos sonhos e a dos símbolos ultrapassam, na visão junguiana, a manifestação singular da vida mental e emocional do sujeito, mas deste sujeito como parte do universal, de todas as experiências humanas. Em outros termos, a análise das neuroses teria como enfoque o inconsciente individual e os chamados pequenos sonhos da vida ordinária ou cotidiana; enquanto que os grandes sonhos, de cunho universal, de expressões de arquétipos do inconsciente coletivo...

Tentei, inutilmente, parar a sucessão de textos digitados na velocidade da luz quando, de repente: fiat lux! Abri a página do Google e, incontinenti, usei a ferramenta mais útil para a humanidade depois da descoberta da roda, há cerca de 6.000 anos: Ctrl-C/Ctrl-V – para os dinossauros de plantão, se ainda existir algum: copiei e colei o texto que a moça me havia enviado. Joguei no Dr. Google e o que me aparece, o quê? Estava lá, incólume, o mesmo texto enviado pela virtuose da digitação e do conhecimento pós-Freud! Impliquei:

– ‘O rompimento da amizade deles impediu a continuação de uma parceria que poderia ter contribuído para um desenvolvimento ainda maior da ciência da psique e para o alargamento dos horizontes de conhecimento da interioridade do homem’, você não acha?

(Minutos de espera...).

– Freud dava ênfase à biologia como substrato do funcionamento psíquico; enquanto Jung desenvolveu uma teoria mais fundamentada nos processos psicológicos. Uma biografia de Jung seria incompleta, mesmo que limitada ou modesta, se algumas das diferenças não fossem apontadas. A dissidência de Jung é um fato histórico importante do movimento psicanalítico porque não implicou apenas em discordância teórica, mas no desenvolvimento de uma nova escola, a Psicologia Analítica...

Agora era a minha vez... Ctrl-C/Ctrl-V e tome:

– ‘Profundamente satisfeito em desenvolver sua própria psicologia, Jung afirmou mais tarde que não sentiu o rompimento com Freud como uma excomunhão ou um exílio. Foi uma libertação para si. (...) Sem dúvida, o que Jung extraiu desses anos foi mais do que uma briga pessoal e uma amizade rompida; ele criou uma doutrina psicológica reconhecivelmente sua.’ (GAY, 1989: 227).

Silêncio... Minutos depois, angustiantes para mim, provoco:

– Algum problema, linda?

– Não, nada não... Que Mico, com M maiúsculo, que paguei! Estou parecendo uma maga que perde o poder de enfeitiçar. Com cara de pata, sem graça como a Margarida do Pato Donald, usando sandálias, tipo alpargatas de dedo, da ‘Glenda’.

– Que tal procurar um bom Doctor – ainda existem bons e sensatos médicos que cuidam certas disfunções humanas...

Continuamos nosso falsíssimo diálogo e decidimos marcar um encontro.

*..*

– Que tal uma bebidinha pra relaxar? Aceitaria um Wilson?

– Não, prefiro Grapette! Wilson é muito insulso.

– Aqui tem som ambiente, posso pedir ao violonista pra tocar uma música do Jorge Ben Jor?

– Não! Nossa, que gosto o seu! Prefiro um Emílio Santiago. Ele tem uma voz mais doce...

Felizmente, depois do jantar, à luz de velas, as palavras se tornariam meros enfeites e as dissidências entre todas as filosofias mundiais não fariam diferença alguma.

E num frasquinho, rosado e gracioso, in vivo, milhões de novos zoidinhos digladiavam na inglória luta pela sobrevivência – todos barrados!

Nijair Araújo Pinto

Crato-CE, 14 de junho de 2011

14h37min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 14/06/2011
Reeditado em 16/06/2011
Código do texto: T3034302
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