Trumbicou-se
Encontrei casualmente um velho amigo de infância. Apesar de amicíssimos, há muito não nos víamos. Esse encontro nos encheu de contentamento e aproveitamos para pôr em dia as lembranças idas.
Alisamos os mesmos bancos da escola primária, onde durante as sabatinas – tristes tempos da educação brasileira – sempre levávamos a melhor sobre os demais colegas da classe.
Lembro-me muito bem que o Juca - esse era o seu nome – se derretia de gozo ao palmatorar os indefesos pequerruchos que erravam uma resposta e caiam em suas garras dolosas. Sem esboçar qualquer reação e sob a complacência da professora – que a tudo assistia e endossava - eles abriam as delicadas mãos e as estendiam ao algoz que do alto descia a pesada férula, sem compaixão ou remorso.
Juro que nesse particular éramos equidistantes. Ainda bem, para gáudio das pessoas de boa índole, tal prática sádica há muito foi abolida. Aproveito a oportunidade para externar a minha ingente satisfação em saber que gerações atuais e futuras não passarão por tamanho suplício.
Como estudávamos em dois turnos, qualquer travessura praticada ou tarefa escolar não cumprida era motivo suficiente para o aluno ficar trancafiado na sala, sem direito a almoçar em casa. O aluno infrator recomeçava o segundo turno da aula com o bucho vazio, juntamente com os demais colegas de turma chegados de casa com a pança cheia. Como nunca fui candidato à beatificação tive, vez por outra, cerceado o meu sacrossanto direito ao “rango” do meio-dia. O Juca nem se fala. Era um contumaz infrator.
Éramos como unha e carne. Amigos de fé. As crianças, em sua ingenuidade e inocência, são amigas leais e verdadeiras.
Reminiscências à parte, o tempo passou e o amigo se mudou para a cidade grande. Não deu mais sinal de vida nem de morte!
Crescemos. E, com o passar do tempo, o esqueci. Provavelmente ele também me esqueceu. Esquecer é típico do Homem moderno. “Faz parte”. A máquina o consome impiedosamente. Não sobra tempo para lembrar-se dos velhos amigos.
Tempos depois eu o reencontrei, homem feito e o recebi em minha casa. Aí o notei bastante esnobe e robotizado. O amigo já não era mais o mesmo dos tempos de infância. Estava chato... Um cara cacete!
Ao perceber não ter sido reconhecido, foi logo falando:
Diga aí “bicho”! Não está me reconhecendo “cara”? Sou o Juca, filho da dona Ester. Seu amigo de infância e colega de escola!
Notei, então, estar o amigo acometido da epidêmica padronização que assola a comunicação hodierna. Dei um salto retrógrado, entrei no túnel do tempo e fui até os idos da nossa escola primária em busca do humilde Juca, pois aquele diante de mim não era mais o mesmo.
Chamar-me de bicho! Perguntar se eu não lhe sacava? Ora vejam que despautério!
Isso, para mim, foi o cúmulo da insensatez. Quase o saco de dentro do meu modesto lar. O mandaria às favas em razão de tamanha cretinice, não estivesse em jogo uma velha amizade.
O amigo, como milhares de outros autômatos a infestar as ruas das pequenas e grandes cidades repetia incessantemente uma porção de vocábulos previamente processados em seu cérebro maquinal, constituindo o artigo de consumo da moderna comunicação: “bicho”, “cara”, “pessoa”, “é nenhuma”, enfim...
A contragosto, o aturei. Tentei me modernizar em busca de um “feed back” em nossa comunicação.
Ele se foi...
Voltei, então, ao meu estado normal de cafonice, consciente de que o amigo havia se “trumbicado”.
Mas não tenho certeza cristalina de ter voltado.
Julguem vocês.