VENDO A VIDA BEM DO ALTO

Embora na maciez do outono o sol daquela tarde ardia sobre as sofridas casas de madeira que pareciam estalar, todas apinhadas aos pés dos morros que margeiam o asfalto.

O cenário cortado pelas mais recentes estradas que interligam os munícipios da grande São Paulo é a prova mais cabal e surreal do quanto pecamos enquanto sociedade organizada. É como rodar pelo asfalto e pulverizar toda a verdade escondida por sob os tapetes dos anos,aonde as palavras se perdem nas poeiras das estradas.

O acesso tortuoso por entre as casas das vizinhanças é feito a pé, por íngremes escadas escavadas sobre a terra vermelha e seca, e foi justamente ali que eu o observei no seu labor daquele final de dia.

Por uns instantes eu me senti qual o menino lá do alto do morro, a beira dos dez anos de vida que, com uma velha bola na mão, de pés no duro chão , em cuja pele dos calcâneos espesssos já não há tato, de surrado calção empoeirado e de peito descoberto, olhava ao horizonte os carros que passavam pela estrada lá de baixo.

Um cenário figurativo e rápido demais para se entender seus porquês.

De relance, numa fração de exatos dois segundos, eu senti que aquele olhar perdido procurava displiscentemente pela vida que tão rapidamente passava lá embaixo, deixando para trás a infância perdida, de destino totalmente incerto.

Senti um arrepio nos ossos.

Ali o roteiro de tantos destinos estava perpetuamente lançado ao nada, a não ser que algum grande milagre ali descesse dos céus.

Quando meu carro abandonou o cenário a adentrar pelos idênticos mais a frente, então, ainda pude perceber através das propagandas nos barracos, que recentes eleições haviam passado por ali, como tantas que sempre passam sem mudarem absolutamente nada.

Passam exatamente como passavam os carros nas rodovias lá de baixo.

Porém, quando perplexamente olhei um um pouco mais acima, no topo dum morro ainda muito distante do céu , eu pude ler a inscrição " em breve Jesus voltará".

De fato, há milagres que já não pertencem aos homens.