Pulgueiro da Augusta
Sinto-me como um personagem do brilhante “Os Nus e os Mortos” neste quarto de hotel vagabundo e caro da Rua Augusta; deitado numa tarimba fria e dura temendo levar chumbo no rabo se cochilar por alguns minutos. Lembro que gostei bastante do Red e do Hearn, quando o li, mas me encaixo mais naquele outro que caiu do penhasco no segundo volume do livro. Esqueci o nome dele. Está um cheiro terrível de encanamento entupido aqui – cheiro de merda, mesmo; daqueles quer fazem as vias aéreas arderem mais do que uma inalada em rapé. Não é difícil de imaginar que o hóspede que me precedeu levantou o colchão e cagou por entre os estrados e depois recolocou-o no lugar e foi-se embora. Nem me arrisco a averiguar, pois é bem capaz de eu encontrar um pedaço de cu ensangüentado de alguma dessas putinhas filhinhas de papai – tipo umas que acabei de encontrar na esquina da Peixoto Gomide mandando uma carreirinha pra dentro -, rodeado de saúvas famintas.
Escrevo isto num post-it 657, amarelo, de bruços, de samba-canção e coberto por um trapo quadriculado de mendigo, defronte ao espaldar da cama, sozinho no mundo, com o intestino preso e sem ter a quem presentear em mais um Dia dos Namorados. Nada deu certo nesta semana que acaba hoje, sexta-feira. Há duas horas atrás queimei a língua e tive uma hemorragia nasal bem na frente do Espaço Unibanco, com apenas uns tocos de papel higiênico pra estancar a porra toda. 10°c lá fora; quente, aqui – pra quem tem a alma no Zero Absoluto.
Aliás, a semana não acaba hoje. E é por isto que estou aqui neste quarto, ora escrevendo, ora olhando o ventilador do teto e me perguntando aonde minha vida vai me levar...
Me deram este quarto mais distante por que pretendem me estuprar no cu e levar todo o meu dinheiro, eu sei... Pode ser paranóia, mas eu consigo muito bem me imaginar acordando diante de cinco mouros nus de expressão impassível e repetindo, em uníssono, como se fosse num mantra: “seu cu não será perdoado”
Queria ter um caderno tão mais do que uma mulher só de calcinha, escovando os dentes depois de uma trepada homérica, agora...
Será que virei personagem de algum conto do Guilherme Sakuma? Não posso beber, pois estou tomando dois antibióticos. Lembrei disso por que acabei de arrotar amoxilina... Já sentiram o cheiro dessa porra? Sem contar a impressão desagradável de estar com um bafo de cachorro que passou três dias fora de casa que me dá vergonha de expirar um pouco mais forte.
Agora há pouco tive a sensação de NÃO estar sozinho. Alguma puta sentada na beira da cama, fumando, de pernas cruzadas – o fantasma dela, eu quero dizer. Também consigo ver alguém colocando um revólver na boca e pedacinhos de cérebro escorrendo nas paredes depois do estrondoso estampido.
É, já chequei todas as possibilidades de suicídio e elas não são nada animadoras. Nunca são, quando as conjecturas deixam de ser hipotéticas e adquirem aquela certeza do próximo – decisivo e derradeiro – movimento. Olha, posso pegar esse cinzeiro e ficar batendo na cabeça até desmaiar; dá pra amarrar uma corda numa espécie de haste que tem no ventilador do teto, porém, não há corda. A não ser que eu tente fazer isso com o cadarço que uso como cinto. Posso ligar lá na recepção e falar com aquele sujeitinho mal-encarado e pedir um barbeador daqueles que têm uma lâmina só e cortar os pulsos e a garganta; também posso pedir uma garrafa de uísque do mais caro e tomar todos os trinta comprimidos que tenho na mochila e dar uma longa e deliciosa talagada. Ou me asfixiar com esse saco que embala essa toalha nojenta...
Sei lá, cara, meus olhos ardem e daqui a pouco eu tenho que acordar pra ir trabalhar (em pleno sábado, deus!), mas não consigo dormir enquanto não encontrar um por quê pra essas manchas de merda estarem no teto.
Coloquei o relógio para despertar daqui duas horas. Ou seja: uma da manhã. Preciso tomar o outro remédio, sabe? Me senti meio senil e bicha fazendo isso, não sei por que.
Que me resta a fazer? Isso de escrever acaba comigo! Eu paguei pra dormir e fico sentado, olhando meus joelhos debaixo dessa coberta cheia de traças e tentando trazer alguma coisa do além pra descrever com essa caneta – a nona desde que entrei no escritório (porque tenho um dos salários mais baixos de lá e quem ganha de duas a oito vezes mais leva as minhas embora e eu tenho que ficar pegando lá no almoxarifado – que eu cuido, inclusive), e, enfim, a bateria do MP4 acabou, como sempre, e ouvi risadas no corredor – risada de mulher. Ótimo, vou ter que agüentar gemeção!
Coloquei o relógio pra despertar às quinze pras sete e também às sete. Entro às oito no trabalho. Em casa, eu teria que acordar às cinco e enfrentar a clássica epopéia de sempre. Apaguei a luz, depois de colocar a blusa, me cobri e dormi instantaneamente.
*
Acordo pra tomar o remédio. Faz frio. Faz muito frio. Frio demais. Tem uma janela aqui que dá para os fundos do terreno e não dá pra ver muita coisa além de um apartamento da Frei Caneca. Algumas pessoas numa varanda com copos nas mãos. Só sei que faz frio, e eu volto feliz pra debaixo das traças.
*
Agora não tem conversa. Levantei e corri pro banheiro e vomitei. Não sei o que houve. Fiquei diante do chuveiro ligado por dois minutos esperando a água esquentar. Ela não esquentou, e nesta manhã de sábado inédita da minha vida – tanto pelo fato de ter que ir trabalhar, como pelo fato de estar sozinho num hotel, sendo que eu tenho casa e uma cama com um edredom e um cobertor bem quentes – faz um frio desgraçado – há neblina no quintal dos fundos. Não teve jeito. Tive que me enfiar na água morna, tiritando, e tomar um banho só com o sabonete que comprei num mercadinho explorador da Peixoto Gomide. Na hora de me enxugar, deixei uma marca de sangue na toalha. Devo estar morrendo. Não que eu me importe muito com isso, desde que seja rápido. Não tem talco para as meias e isso, sim, é pior do que uma morte lenta! Sete e meia da manhã; não consigo acreditar que vou chegar atrasado a apenas duas estações de metrô de distância do escritório! É patológico, esse meu atraso... Saí do hotel às sete e trinta e cinco e subi a Augusta atrás de um trio com com cerveja em copos de plástico em mãos. A neblina é densa e o vento é cortante, no rosto.
*
Peguei o Metrô vazio, silencioso, e me dei ao luxo de me sentar pra percorrer as duas Estações... Desci na Brigadeiro e cheguei no escritório cinco pras oito.
*
Por que ainda moro na Zona Leste? Só pra passar 4 horas por dia chacoalhando a espinha nas carroças metroviárias e afins?
*
Agora são nove e trinta e seis da noite do sábado, ainda estou no escritório com algumas pessoas e é por aqui que ficaremos, só para não termos que cruzar a cidade pra ter que voltar logo cedo... Ou ter que dormir num pulgueiro da Rua Augusta. E pra não passarmos o Dia dos Namorados desmontando e remontando – em ordem alfabética - um arquivo com mais de cinco mil nomes.
*
Não estou reclamando.
*
Ouvindo Death In Vegas, que sempre me remete à noite mais intensa que já pude ter com alguém.
*
10/06/2011
11/06/2011