MORTE - NO MOTEL

O velório transcorria sem novidades. Um velório difícil, sofrido, pessoa muito bem relacionada na cidade e que havia morrido de forma um tanto “estranha”. Morreu afogado na banheira de hidromassagem de um motel de luxo, onde passou toda a tarde sozinho, conforme apurações da polícia local, diante dos testemunhos dos funcionários. Estranho sim. Mas quem poderia duvidar dessas coisas.

O velório transcorria normalmente, com gente verdadeiramente triste de um lado, outros forçando semblante de tristeza por pura conveniência. Alguns choros e os cochichos correndo pela sala, pelos corredores. Difícil estar ali. Não conhecia o falecido, estava ali por pura obrigação social, já que o dito cujo era o sócio majoritário do meu maior cliente. Embora não mais atuasse na empresa, mas era o dono e eu tinha que marcar presença.

Sofrido sim. Não pelas dores alheias, nem pelas minhas, que inexistiam. Sofrido por estar em um ambiente tão hipócrita, todas as formalidades sendo cumpridas. Inclusive os pêsames e os lenços enxugando secas lágrimas. Os óculos então..... Grandes, escuros, escondendo olhos mentirosos. Sofrido por estar ali, sob as raias das convenções sociais e de parentesco.

A tarde corria. Aproximava-se o horário do corpo ser levado para o cemitério. O Padre encomendava a alma viva do corpo morto. Escutei a ladainha de sempre, que a morte não é o fim, que era um homem exemplar, um homem modelo de “pai de família”, marido fiel, que Deus o acolheria e lhe reservava, com certeza, um lugar no paraíso, zelando pela sua vida eterna. Claro que fez questão de declarar que o Senhor Vieira era um colaborador assíduo da Igreja. Que Deus haveria de recebê-lo a abençoá-lo.

A viúva, uma senhora grandona, pesada, rosto rude, gordo, passava o tempo sentada numa cadeira que não lhe cabia toda a bunda, recebendo os pêsames, sem responder a quem quer que fosse. Simplesmente ali, impassível, silenciosa, de voz ou lágrima. Blasfêmia, pensava ela, sobre as palavras do Padre. Fiel..... Se aquele peste era fiel. O povo não sabia da ladainha a metade.

E eis que de repente, não mais que de repente, os olhares todos se voltaram para o portão da casa do defunto. Uma mulher linda, cabelos jogados nos ombros, salto altíssimo, vinha desfilando pela entrada que dava na varanda da casa. Vinha andando como a desfilar seus fartos seios meio a mostra e as pernas torneadas que a curta saia não escondia.

E veio, veio, todos os olhares em seu colo. Entrou na varanda, na sala. Aproximou-se do caixão. Todos os olhares nela. A viúva olhou, impassível. Nenhum gesto, nenhuma menção, nada. Nadinha de nada. A moça cochuda aproximou-se então do caixão, arcou-se um pouco para melhor olhar o morto e a ponta da saia, claro, levantou, mostrando um pouco mais das coxas. E todos os olhares em suas pernas. Nem assim a viúva fez qualquer movimento, nem mesmo com os olhos.

Baixou mais, aproximando-se mais do morto. Seus lábios fizeram movimentos, como se estivesse dizendo alguma coisa ao morto. Tentei ler os seus lábios e tive a impressão que ela dizia “desculpa”, “desculpa”. Jogou um beijo silencioso, voltou-se para a porta e foi saindo. Silêncio total, absoluto. Calaram-se até os burburinhos. Só se ouvia o tic-tac do salto do sapato da moça caminhando em direção a porta. Tomou a rua, caminhando firme, esbelta, passos concatenados e os quadris balançando..... Direita, esquerda, direita esquerda. Os olhos dos amigos do morto seguiam o mesmo balançar.

A moça tomou à calçada, andou um pouco mais e entrou num carro de luxo, que roncou e se foi embora, ficando ali o morto, a viúva, os “amigos”, os pesares e a curiosidade. Curiosidade mortal. Só a viúva continuava impávida, gélida, estátua de carne, osso, peles, banhas, mágoas e rancores.

Sumiu a moça, escafedeu-se. Mas ficou na sala o perfume, que quase se confundia com o cheiro das flores fúnebres. Por isso detesto flores fúnebres, cheira morte, cheira fim. Prefiro o perfume das moças bonitas. E todos ali, acho, concordavam comigo, pelo menos os homens. Bem melhor o perfume da moça.

Mas a viúva sabia da moça. Ahhh se sabia. Aquele estrupício, safado. Não queria a sua morte, mas bem que merecia, o safado. Ainda bem que tinha deixado um belo patrimônio, os filhos estavam todos encaminhados e ela agora iria sim viver sossegada. Olhou o caixão e resmungou “safado”. “Estrupício”.

A moça se foi. O silêncio se foi e recomeçaram as conversas, cochichos aos pés dos ouvidos. Até que cheguei próximo de duas senhoras que conversavam animadamente e como deduzi que eram amigas da viúva, fui logo fazendo a pergunta que não calava, nem na minha boca, nem de nenhum dos presentes desinformados, curiosos de morrer.

- Quem era a moça que chegou? As senhoras sabem quem era? Tinha alguma coisa haver com a morte do seu Vieira?

E como já era de se esperar, elas sabiam. Então me contaram que a moça era “amiga” do morto. A “sem vergonha” era amiga do morto. Quer dizer, amante do morto.

- Veja só moço - desembuchou a mais velha das senhoras – uma moça como aquela, nova, cheia de viço e amante de um velho. Olha só. O Vieira tinha mais de 70 anos, o safado, e metido com uma guria dessas. Os homens são assim mesmo. Depois de velho, perdem a vergonha.

- E o que a “Quenga” teve haver com a morte do Seu Vieira? A senhora sabe? – Já me referi a beldade como quenga para agradar as velhinhas e com isso contar com a confiança delas. Para soltarem a língua. E minha tática deu certo. A mais velha soltou a língua.

- Teve sim moço. Teve sim. Aconteceu que..........

Então eu soube da realidade dos fatos que levaram a morte do velho Vieira. O velho Vieira tinha diversas amantes. Todas escolhidas a dedo, a exemplo daquela que recém havia saída do velório. E eu tinha razão, quando entendi que ela havia pedido desculpas ao velho. Tinha mesmo.

Ocorre que ele sempre se encontrava com as amantes já no Motel, para não dar mole para as fofoqueiras (como se adiantasse). E no dia anterior, combinou com a gostosona no Motel, a partir das 14 horas, como faziam todas as quartas. As 2 estava lá. Pediu um whisky, bebeu, engolindo já no primeiro gole um estimulando sexual e foi se preparando para receber a amante das quartas-feiras. Era a mais bonita. A mais fogosa, a que lhe fazia todas as vontades. Ela era danada. Fazia cabelo, barba e bigode, a safada.

Mas lhe custava caro. Custava apartamento, carro, butique, salão e ainda uma gorda mesada. Mas valia a pena. O dinheiro ele não levaria no caixão, mas as boas lembranças ele carregaria e levaria junto para a eternidade.

A moça, que soube então se chamar Mônica, saiu de casa já logo depois do almoço, mas tinha que passar no salão antes. Cabelo, massagem, enfim, tinha que se apresentar ao “padrinho” bonita, cheirosa, fogosa, tudo em cima. Iria atrasar um pouquinho. E isso era bom. Assim aumentava a “expectativa” do padrinho.

Duas e meia da tarde. Seu vieira já começa a ficar nervoso. Se bem que era comum a Mônica se atrasar.
Resolveu que iria tomar um banho. Enquanto esperava, iria se revigorar na banheira de hidromassagem que tinha na suíte do Motel. Boa idéia. Acabaria de beber o whisky deitado confortavelmente na banheira.

Três da tarde e a Mônica ainda estava no salão, por sua cabeleleira achou por bem pintar o cabelo e isso demorava um pouco mais. O Vieira esperaria. E teria a tarde inteira, até parte da noite para “agradar” o Padrinho. Já era muito.

O padrinho então abriu a água e deixou correr. Olhou o relógio antes de tirá-lo do pulso. 3;15. Bom, ela deve chegar logo. Pediu mais uma dose de whisky e esperou. Assim que chegou, tirou a roupa, pôs o whisky na borda da banheira e entrou. Gostosa a água. Tinha tido uma bela idéia. Quando a “afilhada” chegasse começariam ali mesmo na banheira. Boa idéia. Ajeitou-se bem e ficou pensando na vida. E pensou, nos filhos, já independentes, todos com sucesso. Lembrou do patrimônio que tinha formado, tudo com o “suor do seu trabalho” e, claro, algumas sonegações, alguns favorecimentos em troca de propinas, algumas poucas explorações de empregados, mas tudo bem. Era ele ou os concorrentes.

Lembrou da mulher, sempre reclamando da vida. Desde moça. Só queria saber da igreja, de gastar o seu dinheiro, de dizer que ele só queria sexo, só sexo. Que estava cansada de ser depósito de esperma. Eta expressão mais safada, mais velha. Mas ela usava desde muito.

E assim os pensamentos corriam. Passou pela mocidade, pelo primeiro negócio. O primeiro filho que nasceu, o primeiro carro de luxo, o dinheiro entrando, os negócios dando certo. A idade chegando, as noitadas, as raparigas. Depois as “afilhadas”. Mais uma e mais outra. E agora a Mônica, a preferida. Que não chegava. Não chegava.

Bebeu mais um gole do whisky. Mas outro. Os pensamentos correndo a vida. A água morna, gostosa, a cabeça ficando zonza com o whisky e uma sonolência tomando corpo....... Gostoso. E a Mônica que não chegava.

Quatro Horas. Mônica sai do salão. Toda linda e toda apressada. Poxa, passei da hora. Essa hora ele já está fulo de raiva, pensou. Pegou o carro e foi. Quatro e meia chegou ao Motel. Já era conhecida. Apresentou-se pelo interfone e a moça simplesmente disse. Ele está no 301. Pode deixar o carro no 302. A porta de ligação está aberta. Uma boa estada Dona Mônica.

E ela foi. Entrou na suíte, TV ligada num filme pornô. E quando entrou no banheiro, viu o “padrinho virado de bruço na banheira, braços esticados e com a cara enfiada na água. Aquela bunda branca, feia, aparecendo.

Chegou até perto. Chamou e nada. Tocou nas costas e nada. Chamou de novo. Nada. Começou a se arrepiar. Passou a mão por baixo e o virou. Estava....... Estava morto. Morto. Parecia estar morto.

Foi ao telefone e pediu socorro. Veio o Gerente. Ela contou o que tinha ocorrido até ali. Que atrasou, que ele estava ali desde as duas. Que certamente havia dormido e se afogado. Só podia ser. Então combinaram que ela sairia como chegou. Que ele chamaria a polícia e todos os funcionários seriam orientados para não falar da sua presença ali, como habitualmente.

Claro que tudo em troca de preservação da imagem do Seu Vieira e também por conta da promessa de uma bela gorjeta e de outros favores futuros.

Entendi. O Seu Vieira havia morrido afogado na banheira de hidromassagem do Motel, onde costumava ir nas tardes de outono, para usufruir da tranqüilidade e conforto das suas instalações e assistir filme pornô, além de beber o seu whisky, coisas que não podia fazer em casa, pois, sua esposa entendia fosse coisas do satanás.

Mas ainda me ficou uma curiosidade. Como a velhinha sabia de tudo e tão detalhadamente? Perguntei para a senhora e jurando que não “contaria para ninguém”, soube também que ela era mãe da recepcionista do Motel e que também tinha recebido uma gorda gorjeta da moça bonita para guardar segredo.

Chegaram então os funcionários da funerária. Fecharam o cachão e o levaram para o carro fúnebre. Fez-se o cortejo e eu atrás, seguindo o funeral e pesando........ Preocupado com as tantas moças viúvas que o Seu Vieira tinha deixado sem os agrados do padrinho bonzinho.

Uma me preocupava mais. Exato. Aquela que pedia desculpas ao falecido, mostrando as coxas para a viúva gorda.