Deus e Jesus com Freud
_ Então, como posso ajudar os dois cavalheiros? Ah, sou o doutor Freud, vocês como se chamam?
Um homem de aparência bastante idosa, com uma longa barba grande, e cabelos bem embranquecidos, olhou para um jovem que aparentava ter uns 35 anos de idade, cabelos pretos, olhos castanhos, e ambos com roupas que pareciam ter saído de um filme que retratava os povos de milênios atrás.
_ Bem doutor, meu nome é Deus, e este é meu filho Jesus. Nós soubemos que o senhor é um grande especialista em sua área, psicanálise, e sabe lidar com diversos tipos de problemas psíquicos, de relacionamentos, e vários outros.
_ Sei, entendo_ respondeu Freud, anotando em seu livrinho “distúrbio de personalidade religiosa”.
_ Não doutor Freud, não temos distúrbio de personalidade religiosa_ afirmou Deus, causando espanto no médico.
_ Como você sabia o que estava escrevendo?
_ Porque eu sou Deus senhor Freud, e sei de tudo. Sou onisciente, sabia disso? Ou o doutor não acredita em mim?
_ Bem, eu acredito no que você diz acreditar. Mas, se você é Deus, e tudo sabes e podes, por que vossa excelência veio até mim, reles homem imperfeito e cheio ainda de dúvidas que sou? Diga-me Deus, por que vieste procurar-me?
_ A questão doutor é meu filho. Ele não quer mais falar comigo, sabe. Passamos milênios e milênios discutindo sobre quem e o quê ele é, suas funções no universo, e sobre mim. Ele quer ser eu. Ele diz ser eu. Eu disse que eu sou pai da criação e de tudo, inclusive dele. Mas como concedi todos os meus poderes a ele, agora ele quer reinar sobre tudo, até sobre mim. Eu disse que não, pois esse não foi meu propósito ao criá-lo com todo o meu amor e poder. E agora ele não aceita o meu “não”.
Freud, ouvindo tudo atenciosamente, desconfiava que ambos poderiam ter algum tipo de alter ego esquizofrênico que incorporaram para si mesmo. Lembrou-se de quando seus pais o levavam para passear ao redor do parque que ficava perto de sua antiga casa, e de como seu pai falava sobre Moisés, e o sofrimento que o povo judeu sempre sofreu.
_ Seu pai está bem doutor Freud, assim como sua mãe. Eles também têm saudade daqueles passeios perto do parque_ respondeu Deus, o que fez Freud levantar-se de sua poltrona.
_ Que é isso? Como você está fazendo isso? Como sabes o que estou pensando?
_ Já lhe disse Freud. Eu sou Deus. Todos os seus pensamentos mais íntimos e secretos são para mim como um livro aberto escrito com letras gigantescas.
_Não_ retrucou Freud_ isso não é possível! Devo estar sonhando... Ou devo estar sobre alguma medicação que injetei em mim mesmo que provoca alucinações... Vocês dois não existem, é fruto do meu inconsciente...
_ Acalme-se doutor. Sei que não acreditas em mim, como o que chamas de inconsciência, alucinação, paranóia, distúrbio disso e daquilo, tudo isso eu criei. Calma. O ponto principal aqui doutor não é seus escritos, suas idéias e fundamentações para analisar e explicar os porquês que levaram o homem a crer em espíritos, deuses, inferno, e todas essas bobagens. A questão X aqui é meu filho Jesus. Já tentei todas as formas para tentar convencê-lo de bom grado que ele não deve ser eu, e que ele não pode me exigir que eu deva me curvar perante ele, afinal ele, assim como tudo, só existe porque eu assim quis e fiz.
Freud, ainda confuso, buscando dentro de si uma explicação racional que tentasse desvendar e esclarecer cientificamente tudo aquilo que estava transcorrendo, disse-lhe:
_ Sendo você Deus, sendo você onipotente e onisciente e pré-ciente, então o senhor já sabia que seu filho amado Jesus um dia iria agir dessa forma, e ser desse jeito, como também sabias que nunca o convenceria, mesmo assim o criaste. Por que então mesmo assim o senhor o criou e o dotou de tantos poderes, assim como fizeste com aquele outro sujeito... Como é mesmo o nome dele... Ah! Lúcifer?
Deus lança um olhar frio e concentrado em direção aos olhos de Freud, e lhe responde sem nenhuma emotividade em sua voz:
_ Vocês são bons em sempre procurar responsáveis para explicar ou culpabilizar segundo seus próprios fins. Sim doutor Freud, eu sabia que meu filho querido e amado se tornaria dessa forma, e agiria desse jeito, assim como Lúcifer. Na verdade doutor, tudo está saindo como eu planejei, como eu arquitetei, e tudo continua conforme eu assim quis.
_Então Deus_ replicou Freud_ do que te queixas? Se tudo o que ocorre no universo, e neste mundo, segue exatamente e precisamente o teu querer, a tua vontade e teus planos, por que viestes a mim para corrigir algo que já tinhas planejado e arquitetado previamente?
Deus olha para seu filho com um olhar cheio de ternura e culpa, e diz para o doutor:
_ Doutor Freud, vou lhe confidenciar algo que jamais disse para ser algum nestes milhares de universos que criei: tudo o que eu predeterminei em meus projetos e planos, eu sempre quis provar a mim que eu poderia estar errado, que eu poderia me enganar com algo, com algum fato, com algum ser, comigo mesmo, mas até eu não consegui. Eu mesmo doutor Freud vi isto há bilhões de anos atrás: vi-me triste comigo próprio ao contemplar que tudo sairia conforme eu predestinei e assim quis; vi-me triste em sempre tudo estar certo e correto conforme eu planejei; vi-me triste porque nunca consegui errar, e com isso, nunca consegui me auto-iludir.
Freud, boquiaberto com todas aquelas confissões de Deus, não sabia o que lhe dizer, o que lhe indicar, não sabia nem mesmo mais se os três naquela sala existiam, e se a própria sala, onde ele supunha que estavam, existia.
_ Vou te dizer uma coisa Deus, ou seja lá quem ou o quê fores: li e reli a tua bíblia. Estudei-a profundamente, e lá encontrei mais erros, distorções, exageros, mentiras do que veracidades. O que me dizes sobre isso?
Deus, sorrindo, falhou-lhe:
_ Isto que me dizes é verdade. Eu mexi tanto nas mentes daqueles homens que se auto-intitulavam “profetas”, pois sempre foi meu propósito justamente isso: inserir inúmeras ambigüidades, erros, ilusões, linguagem simbólica, misturando com coisas reais, para confundir a humanidade. E como você bem sabe, deu certo até hoje, e continuará funcionando como eu tinha desejado.
_ Vou te contar uma coisa que pode até causar minha morte neste minuto por tuas mãos: tu és uma baita sacana Deus.
_ Freud, eu sou perfeito em tudo. Até na sacanagem eu sei ser perfeito. Já vocês não, como eu assim o quis. Mas fique tranqüilo, não vou matá-lo, não hoje, e nem agora. Você acha que um ser detentor de poderes inimagináveis sequer por vocês seria “um cara legal em tudo” como vocês costumam dizer? O Poder Freud é algo impressionante. Vocês humanos jamais saberão o que é realmente ter o Poder. Nunca!
_Bem_ disse Freud com certo nervosismo e dubiedade no tom de sua voz_ eu não sei o que lhes dizer. Afinal de contas, se você já sabia que eu não teria, e não tenho, respostas ou esclarecimentos quaisquer para o que me falaste, por que mesmo assim vieste aqui e me contaste tudo isso?
_ Eu já sabia que me dirias isso. Sabe senhor Freud, gosto de você, gosto de seus livros, gosto demais de todos vocês aqui neste mundo. Contudo, é verdade, tudo no fim não passa de meu joguinho apenas para tentar provar coisas a mim mesmo, e somente a mim mesmo. Não vou lhe mentir, e olha que sei perfeitamente mentir, enganar, roubar, matar, e também amar, mas vou lhe confidenciar outra verdade: eu precisava desabafar com alguém que muito me estudou, porém nada sabe de mim realmente, não acredita em mim; mesmo assim eu precisava desabafar tudo isso com o senhor. Sabe, tenho inveja de vocês humanos neste quesito: é tão fácil vocês serem iludidos, é tão fácil vocês se decepcionarem com os outros e consigo mesmos. É justamente isso que invejo em vocês Freud.
_ E por que vossa excelência não tenta outras abordagens para conseguir este feito que nós conseguimos tão bem?
_ Não senhor Freud, não adiantaria. A imutabilidade inexorável de todos os meus atributos não me deixa errar, por mais que eu tente e queira. No fim, tudo se transcorre como eu previra, como eu quis.
_ E quanto ao seu filho Jesus, o que ele acha de tudo isso? Por que ele persiste em permanecer calado?
_ Meu cético amigo Freud, meu garoto tem essa mania há tanto tempo que eu já nem consigo mais me lembrar. Pilatos e aqueles sacerdotes de merda conheceram muitíssimo bem o silêncio dele. Perdoe-me pelo palavrão.
Freud direciona seu olhar analítico para Jesus, e finalmente lhe pergunta:
_ E você Jesus, o que tem a nos dizer sobre seu Pai, sobre tudo isso aqui?
Jesus olha para os livros que estão ao lado do médico, depois observa a barba de seu pai, e segurando um bloco de papel, rabisca algo que posteriormente entrega ao médico, e lhe declara:
_ Mande o valor desta consulta para esse endereço de e-mail aí que te entreguei. E o que eu acho de tudo isso aqui é que tudo foi uma porra de perda de tempo, e esse velho se lamuriando de seus próprios joguetes e de sua conversa fiada, e que sou eu quem vai reinar no lugar dele, e até ele e o espírito santo, assim como todos e tudo, irão se prostrar e me adorar, seja através do amor ou pela dor, afinal como vocês costumam dizer: os fins justificam os meios.
Quando Jesus se levantou da cadeira, e já ia sair pela porta, virou-se e acrescentou mais coisas:
_ Esqueci-me de dizer. Vão vocês dois pra puta que pariu, e principalmente você seu velho sádico babaca, não pense que eu já não sei o que irás fazer. Lúcifer é um pirralho em suas brincadeiras perversas diante de mim. Fodam-se seus dois idiotas.
Bateu a porta com força e sumiu. Deus, com lágrimas nos olhos, balbuciou para Freud:
_ Hei meu amigo Freud, é duro ser pai. Quanto a mim, eu já vou embora, e obrigado por sua atenção doutor.
_ Espera aí Deus_ grita Freud_ não vá agora. Eu tenho tantas perguntas e questões que eu gostaria que me explanasses. Por favor, fique um pouco mais.
_ Não doutor Freud. Mas fico feliz por seu entusiasmo. Na verdade, você não se lembrará nem desta consulta, nem nada do que eu falei, e continuarás a escrever, clinicar e ser como és, ou melhor, como eu planejei que fosses. Tudo o que ocorreu aqui será escrito por uma outra pessoa, daqui há muitas décadas; será por um jovem tão pretensioso, narcisista, autodestrutivo, lúgubre e um fantoche em minhas mãos semelhante a você.
_ O quê? Como assim? Do que estás falando?
Deus aproxima-se de Freud, o qual extasiado por uma sensação de paz inebriante que lhe percorre toda a sua alma, nem percebe com nitidez o ósculo que Deus lha dá em sua fronte, tirando do bolso do médico o papel que seu filho Jesus havia lhe entregado, sendo que o mesmo cai desmaiado na cama de sua casa, e acorda no dia seguinte para clinicar, sem lembrar-se de nada do que havia acontecido na noite anterior.
Gilliard Alves Rodrigues