Meu passado em retalhos

O meu passado em retalhos

Morei com uma fada na minha infância, ela gostava de me contar historinhas de Maupassant, e , eu após ouvi-las, ficava olhando, encantada com aquelas lagartixinhas , que subiam e desciam as extensas paredes da sala da minha casa. Desconfiada , via o mundo me olhar meio torto. O réptil afiava a linguinha entre os dentes, como uma faca sendo amolada de um lado a outro. Dizem que esses animais são bons predadores de mosquitos, elas comem tais insetos, fazendo uma devassa no ambiente, impedindo que você seja devastada pela dengue.
Todos os dias, minha fada madrinha fazia deliciosas cocadas. Mas não era para vender não, era mesmo para saborear. Eu gostava de sair de minha cama bem cedinho para tomar café e depois me deliciar comendo os doces. Algumas vezes, quando entrava na cozinha, me deparava com um ninho de formigas sobre o alimento. Admirava aquele batalhão de formigas que invadiam a casa, como num pelotão, para subir na tigela cheia de cocadas e devorá-las. Chegava a causar espanto, ver aquele formigueiro em marcha. Mainha dizia que comer alimento com formiga continha ácido fórmico e era bom para os olhos.
Quando eu tinha oito anos, costumava passar na minha rua um homem que todos apelidavam de Maurição. Parecia um gigante! De longe, ouvia-se falar: - Lá vem o Maurição, o taboqueiro! Ao ouvir o anúncio, ficava feliz, mas as pernas tremiam de medo, porque diziam que ele era índio. Eu morria de medo de índio. Para me alegrar, logo , a velha Ninha corria e me chamava: -" Nina, toma dinheiro e vai comprar as tabocas de que você tanta gosta!" Quem disse que eu tinha coragem! Sabendo disso, ela terminava indo comprá-las para mim.
Ofertas da bondade da minha cuidadora, mamãe que me acolheu, que me amou de imediato, uma lavadeira que se interessou em ME adotar. Naquele tempo não existia o protocolo jurídico como  o de hoje, para liberar uma adoção.
Era assim: gostou, levou e prontoooo. Ainda bem! Com essa senhora mãe, fui morar em uma espaçosa casa, num bairro central da Princesa do Sertão. Criada e muito bem criada, não faltavam carinho e brincadeirinhas, debaixo da mesa. Digo, enquanto ela passava roupa em pé por horas, por encomenda, para ganhar o pão e sustentar a família: eu, ela e seu único filho biológico, nós brincávamos travando um diálogo de comadres e compúnhamos inusitados contos que só nós entendíamos: mãe e menina.
Fazíamos de conta que éramos comadres e cozinhávamos em panelas –de- barro deliciosos alimentos: legumes, grãos e verduras, que eram trazidos da roça fresquinhos, sem agrotóxico, por uma mulher muito gentil, cujo nome era Flora. E era muito engraçado, pois eu ficava esperando a vinda de Flora como se espera a vinda de um procurador da República, pessoa de alto nível, chegar esplendorosa para "te ver". Aquela meiga mulher passava todos os finais de semana, na minha rua, com um enorme cesto de legumes e frutas na cabeça para vender na feira e deixava sempre um pouco de tudo, fresquinho para mim, na minha casa.
Não tive motivos para sentir solidão, sentia-me segura, pertinho de mamãe, instalada embaixo daquela extensa mesa de madeira, com meus brinquedinhos de barro e um fogareiro de brasas aceso. Se havia uma coisa que eu gostava de fazer, era brincar de verdade, mexendo com fogo,coisa que me atraía muito. É óbvio que ela acendia. Não tinha perigo não, pois as brasas vinham do fornão à lenha que ficava praticamente o dia inteiro queimando. Mainha apanhava as brasas de carvão, utilizando uma pequena pá, pois temia que eu me queimasse. Na época, deveria ter em média, meus nove anos, por aí.
No Nordeste, algumas casas são enormes, contém muitos cômodos e os móveis são exagerados, pra caber o povo que nem é parente, mas é sempre acolhido. Gente que vem da roça trazer a meia, que corresponde àquela parte da lavoura que foi compartilhada para o plantio, através de doações de sementes por quem não possui as terras, mas tem dinheiro para pagar a plantação. Então as sementes são compradas e entregues ao lavrador (a), a fim de serem plantadas. Depois, ao nascerem os pés de grãos: milho, feijão, mangalô são colhidos e depositados em sacas para serem repartidos entre as duas pessoas, que são os meeiros.
Outras cenas que me lembro, muito marcantes, são as dos transeuntes que chegavam às casas de vizinhos, onde não havia espaço para abrigá-los e iam ficar na casa de alguém hospitaleiro, como lá em casa e na do meu tio Amorzinho.
Já passei por vários estados em regiões brasileiras e convivi com muita gente boa, mas abrigar gente desconhecida no lar, que nem na Bahia, na cidade de Feira, como foi na minha meninice, estou  para ver coisa igual, era impressionante. Nem nas minhas andanças, ao passar por Rolim de Moura com o Lula se pode comparar.
D. Amélia era uma mãe perfeita, pois à medida que fui crescendo, ela foi me familiarizando no mundo da Literatura, citando tanto provérbios que até hoje fazem parte de eternas e instrutivas lembranças. Um deles é este: “-Antes que o mal cresça, corta-lhe a cabeça”. Este, ela usava quando queria me corrigir de alguma falha. Através das palavras tão práticas de Mainha , eu ia me educando e internalizando as idéias para compreendê-las mais tarde. No meu filosofar de Maria, entendi melhor depois que, ao reunir toda aquela Filosofia popular, estaria aquela “mulher de verdade” me preparando para saber ter uma boa resiliência.
Nos momentos mais difíceis, nos quais eu não pudesse mais contar com sua ajuda. Recorreria ao poder da palavra, que é maior do que arma de fogo. É estranho o poder que tem uma palavra, é o poder de cura, de calma, de fortaleza, tem o poder de matar e de salvar também.
Por que vim ao mundo? E por que sobrevivi a quase uma infância roubada? . Já sei que foram aqueles provérbios que minha mãe adotiva falava, que me fizeram não querer desacatar as mãos frias da infância desajeitadas e trêmulas. E é por isso que Jesus me tornou profeta, porque a palavra nos faz renascer das cinzas, por isso, quando ele manda eu falar, eu tenho que falar. É uma bênção!
Quem esteve comigo naquele tempo, vê porque hoje sou um milagre. Teria sido por quais motivos,a minha sobrevivência? Por causa de muita palavra cantada, adocicada, compreendida e aconchegada. E por último, por causa da palavra de salvação em Cristo Jesus, que recebi na fase da juventude.





Cida Maia, 8 de Junho de 2011

Cida Maia
Enviado por Cida Maia em 11/06/2011
Reeditado em 13/07/2011
Código do texto: T3027315
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.