Pingos Nos I's

A última coisa que pensei antes de capotar de vez no sono foi um tweet que publiquei antes de desligar o computador:

"Até o Gregor Samsa consegue acordar mais feliz do que eu."

Ao acordar, às cinco e meia da manhã, a primeira coisa que fiz foi afastar os cobertores das pernas e iluminá-las com o visor do celular, e, para minha decepção, elas continuavam lá, sem a definição muscular de outrora das coxas e com um calombo na canela que ganhei no domingo tentando - e parcialmente conseguindo - o maldito switch frontside bigspin. Em suma, nada de mil perninhas se movendo descoordenadamente (bonita essa palavra, né?) e para levantar da cama não precisei ficar balançando pra lá e pra cá sobre uma carapaça; mas só fiz isso depois de dormir mais quarenta e cinco minutos. Tinha colocado pra despertar mais cedo pra tentar pegar apenas dois ônibus pra chegar ao trabalho mas, como sempre, a preguiça falou mais alto. Tinha também o lance do dentista que não consegui ir na noite anterior, pensando no "ai, vou amanhã cedo".

Saí de casa mais atrasado do que o habitual e também perdi dois ônibus a poucos metros do ponto.

Já no metrô, de repente eu fiquei de saco cheio de ficar protelando o inevitável e saltei duas estações após meu embarque - para ser mais preciso: desci no Carrão - e atravessei a ponte que passa por cima (não, por baixo) da Radial Leste.

O engraçado é que meu nariz está todo fodido e machucado por causa do tempo que ficou sem chover, e resolve chover bem na manhã que eu vou ficar amargando num ponto de ônibus totalmente descoberto.

Entrei no ônibus e fiquei lá na frente, sentado, apreciando um infeliz longo caminho que eu fazia no meu primeiro namoro e tal. Mandei uma mensagem pro meu coordenador informando o ocorrido.

Fiquei cinqüenta minutos esperando o dentista me chamar. Eu dei a sorte de chegar bem na hora que ele saía pra tomar café da manhã.

- O que tá acontecendo?

- Tá aberto arri ó - falei, enfiando a ponta do dedo no dente lindo e escancarado e sangrento.

Ele deu uma olhadinha e sua cara não foi lá das melhores.

- Tá feio isso aí, viu?

- É?

- É... Vou iniciar o tratamento, mas você tem que fazer o canal o mais rápido possível.

- Aham.

Ele não tinha a memória muito boa, constatei, já que me falou a mesma coisa em novembro do ano anterior, quando estive por lá pelo exato mesmo motivo.

Eu nunca fui muito inteligente... Sua constatação ao ler o parágrafo anterior foi bem tardia, amigo.

- Vou tirar um raio-x; segura isso aqui, assim.

Segurei uma plaquetinha branca ao lado do dente, enquanto ele mirava um canhão na minha têmpora, saía por uma porta e o treco fazia um barulho que estava me dando nos nervos na sala de espera. Depois, ele pegou o negócio e eu não vi o que ele fez ou viu; mas a cara que ele voltou não foi a mais animadora pra quinta-feira chuvosa e fria de São Paulo.

Ele sentou ao meu lado, ligou uma lâmpada bonita bem na minha cara - tenho fotofobia, galera! - e eu vi um liquidozinho saindo da ponta da agulha da injeção que ele tinha em mãos. Enfiou de um lado da gengiva, enfiou no outro e, bem, enfiou bem no buraco do dente, e, nesta última etapa, lembrei do pré-sal; daquelas perfuradeiras gigantescas que vão até o centro da terra sugar o sangue das formigas gigantes que lá habitam e etc. Bem, a impressão era de que a intenção dele era anestesiar o meu cérebro junto - o que me seria de grande valia, ter esse troço que não funciona direito totalmente debilitado.

Depois o de sempre: gancho pendurado no canto da boca e esta, por sua vez, escancarada infinitamente; ganchinhos raspando as sujeiras incrustadas no interior do dente e uma agulha em forma de L expelindo um líquido que me fez lembrar a mordida que dei na língua na terça-feira - desgraça ardia demais!

Quando acabou, ele me entregou o atestado de horas e a receita, me fez algumas recomendações que eu provavelmente não vou seguir enquanto não sentir as piores dores possíveis, trocamos um aperto de mão e eu fui até o banheiro me olhar no espelho. Tentei forçar um sorriso e o negócio caiu pro lado direito. Tentei de novo e a mesma coisa. Ótimo: uma cara de derrame. Saí do banheiro e enchi um copo d'água e não deu muito certo beber, pois a água começava a verter pelo canto da boca assim que eu virava o copo. Acabei me molhando, molhando o chão e ficando com sede, enquanto cinco ou seis pessoas me olhavam.

Chovia torrencialmente quando saí do consultório. Eu, sem guarda-chuva. Acabei dando sorte: uma lotação pro Metrô Carrão apareceu e o motorista fez a gentileza de parar ao meu sinal, mesmo fora do ponto. Sentei em um banco da frente, ao lado de uma japonesinha e, bem, a cobradora, logo em frente, com uma perna num degrau e outra noutro acabou roubando a minha atenção, desviando todos os meus pensamentos para um quarto de motel com óleos, luzes vermelhas e um entre-coxas fenomenal, entre eu e ela.

Continuava chovendo quando embarquei no Metrô - depois de pagá-lo novamente, claro. O que significa que ele se transforma numa lesma de ferro, se arrastando sobre os trilhos. Tive a imensa alegria de ficar entre dois rapazes que, em plenas dez e pouco da manhã, precisavam de um belo de um banho e de uma escovada de dentes.

Saquei o celular e mandei um torpedo para uma amiga do outro trabalho. Pelo horário, ela provavelmente estava no meio do caminho e foi dito e feito: encontramo-nos no Brás poucos minutos depois. Eu estava meio distraído quando ela apareceu e de início não reconheci: os cabelos com um loiro mais forte e roupas que eu nunca tinha visto. Trocamos um abraço apertado.

- E aí?

- A mesma merda de sempre naquele lugar, Rafa...

Ergui a sobrancelha.

- Não diga!?

- Foda.

- O que você tem, que tá todo sem graça? Logo você - e caiu na gargalhada.

- AH, caralho, essa minha boca caindo pro lado tá me deixando mais feio do que o normal.

- Foi no dentista?

- Aham.

- Aquele dente ainda?

- É...

- Caralho, você não muda mesmo...

Tinha alguma tensão no ar podando o assunto. O assunto que nunca faltou entre nós dois. Dado momento, ela virou pra olhar alguma coisa e eu estiquei o pescoço; ela me pegou no flagra e começou a rir com os olhos esgazeados e verdes de sempre.

- Não perdeu essa mania besta ainda?

- Ah, meu, tem que dar uma olhadinha né, pra ver se está do jeito que eu deixei.

Botou a língua pra fora pra rir, como sempre. Fica parecendo um papagaio.

- Toma vergonha na cara! E, por falar nisso: e as minas?

- Vish... Enviadei de vez, sei lá.

- Não pegou mais ninguém?

- Nada... Desde a última vez que nos falamos, só fiquei com duas pessoas; estou numa nice.

- Caramba...

É.

- Loira...

- Quê?

- Vamos marcar uma metida? Preciso do feitiço que você me passou naquelas trepadas pra voltar à ativa.

- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHA.

Parou de rir e ficamos nos olhando. Algumas coisas nunca mudam: se eu avançasse um passo e enlaçasse sua cintura e enfiasse minha língua bem dentro de sua boca, não haveria resistência nenhuma. Mas isso nunca precisou acontecer. Ninguém precisava provar nada pra ninguém; nunca precisou. Quando teve de acontecer, aconteceu. E pronto. E ponto final.

Despedimo-nos com um abraço ligeiro seguimos nosso caminho em direções opostas.

Cheguei no meu triplex, acendi a lareira e fiquei curtindo a chuva e bebericando café com conhaque e fumando charuto e comendo Godiva Gem, até pegar no sono e ser acordado com uma massagem tailandesa.

Não, cheguei no trabalho e só deu tempo de tentar, sem muito sucesso, tomar um copo d'água cheio e começar a ralar o cu na ostra.

Chovia alagadouramente na Avenida Paulista, às onze e meia da manhã. O termômetro marcava 10°c e o vento com os borrifos de chuva diminuíam mais uns três graus; certeza absoluta. E lá estava eu, caminhando de um lado pro outro com um envelope cheio de cheques em uma mão e um guarda-chuva na outra. Se tem algo que me irrita é andar com esses envelopes. Se tem outro algo que me irrita é andar com guarda-chuva. Sem contar que os clips caiam, eu confundia os cheques toda hora, minha calça caia, eu pisava em poças d'água enormes, o guarda-chuva me fazia passar vergonha diante das portas giratórias e etc; tudo isso enquanto a galerinha que fica sentada na escadaria da Gazeta bebia Java Chip e batia retratos com suas D40, sem nunca terem entrado em um ônibus na vida. Deixei por último uma treta que havia dado no dia anterior, onde paguei umas Guias e ficaram faltando algumas importantíssimas. Passei raiva com a porta giratória, como sempre, e, bem, a mulher que me atendeu no dia anterior estava em horário de almoço. Esperei quinze minutos, olhando pro teto, e ela chegou. Ficou um pouco ultrajada com a minha informação, mas, após algum tempo atrás de um balcão, constatou que o erro foi dela e que o comprovante estava lá.

- Ai, ficou aqui, hihihi

"hihihi"... Se a filha da puta tivesse noção dos raios que saíram dos olhares dos respectivos donos dos documentos em minha direção, teria me poupado do desejo de pular do balcão e fazer voodoo dela com clipes de papel esticados.

Voltei na hora do almoço, com os nervos em frangalhos e com nego me acelerando. Consegui beber água. Sinal de que a anestesia tinha ido pro saco. Começou a doer.

Fiquei com vontade de comer massas e fui num lugarzinho aconchegante que sempre me chamou a atenção pelo preço, pelo próprio lugarzinho e pelo fato de se poder comer à vontade. Informação importante: comi lasanha de berinjela (nota: fui no Google pra ver se é com G ou com J que se escreve), penne ao molho sugo, nhoque e outras coisas que não sei o nome. Aquele lugar todo italiano, aquela comida, aquela chuva; todo esse bucolismo!

O mais próximo que pude chegar da Veneza que tanto me encanta.

Não deu tempo nem de escovar os dentes, e já estava eu na rua novamente, com meu envelope e com meu guarda-chuva. Não vou comentar da parte que, esperando um farol fechar, um ônibus causou um tsunami que me molhou as pernas. Bem no dia que coloquei minha calça clara.

Depois de duas horas de muita peregrinação, filas, e tomação no cu em geral, entrei no elevador e vi que havia umas manchinhas avermelhadas na minha blusa nova. Imaginei que fosse de molho das massas - que eu fiz uma lambança danada enquanto comia - mas, ao raspar a unha, vi que não se tratava de molho de tomate: não era uma sujeirinha; a coloração avermelhada já estava impregnada na blusa.

Lembrei do dentista.

Lembrei do preço que paguei na blusa.

Suspirei.

Subi e desci os três lances de escadas - lembrete: cada um possui 17 degraus - umas trinta vezes por coisas mínimas e por lapsos de memória e entreguei alguns materiais de escritório pra um advogado querido e depois fiquei tentando ligar pra minha mãe e perguntar se em casa tinha(m) os remédios que o médico receitou e torcendo pra hora passar logo.

A dor do dente piorou tremendamente, afetando também a minha cabecinha.

Faltando uns vinte minutos pra dar o horário de ir embora, recebo um e-mail maravilhoso confirmando que eu e mais uma meia dúzia de sortudos entraremos no trabalho às oito da manhã do sábado - possivelmente do domingo - sem previsão de saída, pra dar uma ajeitada numas paradas lá. Me olhei no reflexo da janela.

Uma expressão de felicidade radiante digna de um Schopenhauer diante de um Hegel.

Depois de cometer uma gafe tremenda, que rezo (hahaha, "rezo") para que ninguém tenha percebido, arrumei minhas coisas e caí na noite, rumo ao lar.

Fiquei quinze minutos no ponto de ônibus até o mesmo aparecer. Entrei e consegui um banco e foi lá que me enfiei. De cabeça baixa, com um pedaço da touca cobrindo os olhos, eu dormi, acordei, dormi, acordei... Só que depois de um tempo percebi que estava dormindo e acordando demais para um trajeto de apenas quinze minutos. Levantei a cabeça e vi que havíamos percorrido apenas quatro pontos. Olhei no relógio do celular. Eu tinha preenchido meu cartão de ponto há exatos quarenta e cinco minutos antes.

Praguejei.

Blasfemei.

Tentei dormir de novo. Não consegui.

Demorei uma hora pra descer a Brigadeiro e chegar na Praça da Sé. O motivo do trânsito? Um ônibus elétrico que quebrou um pouco antes do ponto que eu desço...

Decidi ir até o ponto final, mesmo. Malgradada sorte, a minha, que, ao tomar tal decisão, percebi que duas bichinhas que estavam num banco ao lado, um pouco atrás, me olhavam com o queixo arrimado na(s) palma(s) das mãos.

Peguei o outro ônibus e, como sempre, sentei na frente. Não consegui dormir e fiquei trocando mensagens com a minha companheira. De repente o sono bateu e eu baixei a touca, cobrindo os olhos, coloquei uma música mais amena - depois que Rainer Maria encheu o saco - e cochilei um pouco, até ser acordado por uma faveladinha escrota do caralho que entrou no ônibus gritando, provavelmente com a xoxota sifilítica piscando, no puro fogo do tesão. É foda gente mal educada e barulhenta, cara...

Desci no ponto final e fui em direção ao caixa eletrônico, pra sacar o dinheiro dos remédios. Ocorreu-me que ficaria 7 dias sem poder colocar uma gota de cerveja na boca. Isso, bem na véspera da sexta-feira que mais merecia um porre por causa dos dias anteriores terem conseguido alcançar um patamar de contratempos e pequenas desgracinhas que não encontro palavras para desenhar. Lá, diante dos caixas, dois vira-latinhas que ao ouvirem meu assobio vieram correndo na minha direção fazendo a maior festa - e sujando a calça que eu pretendia usar no dia seguinte. Fiquei um tempo com eles, mas tive que enxotá-los, porque a pulação estava demais nas minhas pernas enquanto eu manuseava o cartão do banco, que está todo rachado e com o chip solto há bem mais de 1 ano. Quando finalizei o saque, eles haviam desaparecido, restando um outro, maior, todo compenetrado nas mordidas em busca de pulgas e me ignorando.

Saí de lá e peguei outro ônibus; passei na farmácia e na padaria e desci a rua de casa apreciando a névoa gelada que estava rolando.

Tudo, assim narrado, parece ser bonitinho e às vezes engraçadinho, mas o caos que minha cabeça fica quando tudo, tudo, o que aqui foi escrito tem um pormenor omitido e avassaladoramente desagradável, é lastimável e desesperador.

Pensei nisso e acabei suspirando aliviado por estar a apenas poucos metros de casa. Não tinha sido um dia tão ruim assim, afinal.

Mas no exato momento em que concluí que "o dia não foi tão péssimo assim, dããã, teletubbies", pisei em uma merda de cachorro que por pouco não me levou ao chão e que cobriu totalmente o logotipo da marca do meu tênis, sujando também um pouco a barra da calça.

Fiquei procurando poças na rua mas não encontrei nenhuma pra pisar. Eu, que passei o dia chafurdando as pernas nelas. Limpei o máximo que pude pisando no barro e arrastando a sola no asfalto (porque tênis da marca do Jamie Thomas dá em árvore, pra quem não sabe).

Já no quintal de casa, sem muito sucesso na limpeza - pois nas frestinhas do tênis tinha muita merda enfiada - chamei meu irmão e pedi um copo d'água pra jogar no chão e amolecer a porra toda.

- Que porra de copo é esse?

- Tava na pia.

- Que porra de água é essa?

- Não sei...

O copo estava nojento, engordurado, e a água estava branca.

Lembrei do Tiririca ao concluir a limpeza.

Entrei em casa.

- Que porra de cheiro é esse?

- O cobertor...

Fiz uma sopinha instantânea e queimei a língua.

Vou trabalhar o primeiro final de semana da minha vida.

Vou passar o Dia dos Namorados trabalhando.

Tenho que acordar daqui sete horas.

Passo quatro horas por dia dentro de transporte público.

Deu pra entender?

09/06/2011 - 23h07m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 09/06/2011
Reeditado em 10/06/2011
Código do texto: T3025055
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