TURCA EM RETROSPECTIVA

A tarde vai pelo meio e no meio desta tarde de outono, tarde leve de outono e Sol, dessas diáfanas, dessas em que se poderia caminhar indefinidamente por alamedas de paz e silêncio e árvores antigas e paisagens justapostas na retina, ponho-me a pensar em você e a tentar visualizar suas possíveis trajetórias por esta mesma tarde que me entra pela sala onde estou só,tentando transmutar esta infinita saudade de todas as coisas, esta inacreditável saudade de mim mesma, em alguma outra coisa de indelével pureza.

Tento me lembrar de nós, meu companheiro de tantas viagens. Vale do Paraíba, São José dos Campos, Rua Augusta, Rua da Consolação, Avenida Ipiranga, Avenida São João, Hilton, Copan, escadas do Bradesco, Bexiga, os múltiplos hotéis, Parque Trianon, Dzi Tereza, padarias, pães doce, cafés expresso, pães de queijo, água mineral, cervejas, vinho, Cortázar, Borges, Ricardo Piglia, Knut Hansum, Poe, Dostoievski, Joyce, irmãos Campos, Bashô, Zen, Günter Grass, Argentina, Uruguai, Cuba, Alemanha, Japão, Suécia, Noruega, China, Oriente Médio, Espanha, uma ex-União Soviética, uma Rússia, Polônia, uma Hungria, calcinha preta, soutien preto, cinta-liga, meias-vermelhas, filmes pornô, Itapecirica da Serra, oficinas literárias, haicais, teatro Nô, Kabuki, Ibsen, Grieg, Solveig, tangos, tragédias gregas, mate, poesia visual, árabes, persas, astecas, maias, incas, turistas, Matisse, Van Gogh, música de câmera, violino, Stockenhausen, minimalismo, filé com fritas, bolachas, comida chinesa, sufismo, cabala, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, Kafka, Maria, Vera, Cláudia, Inês, Henrique, José, Afonso, Paulo, amores nossos, bigode, óculos, camisa social, paletó, Macunaíma, canto gregoriano, Vivaldi, maleta, Instituto Goethe com sua ladeira, pernas, braços, seios, sexo, boca, viking, fiordes, neve, sabonete, pasta de dente, escova, teu rabo-de-cavalo, teus cabelos soltos até os ombros, Café Floresta, cicatriz no abdômen, charrete, sotaque, chapéu de palha, sítio hipotético, museus, sebos, teorba, Praga, Estocolmo, Oslo, Papai Noel, África, negros, índios, mestiços, ioruba, Buenos Aires, metrô República, manhãs, tardes, noites, madrugadas, andanças, andanças, andanças, andanças, andanças, andanças... mundos e mundos e mundos compartilhados. Seu corpo no meu, seu sono nos meus braços. As palavras como esculturas. Livros, músicas, luas, ruas, mulheres, homens, quadros, banhos, miragens.

Talvez você também esteja pensando em mim neste momento, evocando nossas vidas, nossas noites. Talvez prepare um mate. Talvez esteja traduzindo um texto, escrevendo uma peça, preparando uma aula. Talvez esteja sonhando com fiordes...

Onde está você que me chegou tão tarde, ou tão cedo demais, você, que chegou depois do OUTRO, eu que cheguei depois da OUTRA. Você, que me chamava de TURCA, nos momentos de maior ternura. Você, amante de todas as alinearidades. Você, com o sotaque indefinível que o faz passar por estrangeiro em qualquer país onde esteja, inclusive no seu próprio. Você, erudito, camponês, índio, marginal, mendigo, milionário, múltiplo, uno, indivisível, espelho, rio, monge, pornógrafo, violinista virtual daquele mesmo eterno invisível violino, você que, assim como o OUTRO, este quase sempre por veredas opostas, me levaram para tão longe, para tão longe que eu nunca mais pude retornar ao meu ponto de origem, mesmo tendo a ele retornado, por imposição do DESTINO, ou seja lá o nome que se possa dar a ISTO.

Republicação na manhã de 07 de junho de 2011.