A LEI DA LIBERDADE - CRÔNICAS HISTÓRICAS
“Revogam-se as disposições em contrário”. Pronto. Sinto o cheiro das camélias brancas cultivadas pelo quilombo do Leblon, como símbolo da luta abolicionista. Sinto o perfume das flores que foram atiradas aos senadores favoráveis ao projeto da lei do ventre livre. Parece que um jardim inteiro toma conta desta sala. Um perfume inebriante, que nos toma a todos e espalha por esta nação, como que a retirar os ares impuros de morte, dor e maldades trazidas pela escravidão. Felicito-me com aqueles a quem financiei a alforria e a tantos outros pude aconselhar e intervir em suas liberdades. Olho as gotas de tinta nesta pena de ouro. Poderia eu escrever tantas histórias e tantas outras leis. Eu tenho nas mãos um grande poder. Sou eu quem decide, mas não sei se posso ousar. Essa lei que acabo de assinar, sem volta, já se faz por demais ousada, mas também demorada. Já ouço dos barões as inúmeras reclamações e os descontentamentos que precisaremos suportar. Creio que neste ponto final de tinta, também nossas vidas e nossa monarquia se transformam. Os republicanos terão um fôlego extra em seus propósitos. Acabo de assinar a lei que extingue de vez os anos, e são vários, de escravidão nesse país. Como as gotas de tinta caem no papel, gotas de lágrimas caem do meu rosto. Enxugo-as com as mesmas mãos que deram, enfim, a liberdade a tantos homens e mulheres por nós escravizados. Volto ao dia do meu casamento, em que pude ter uma das maiores alegrias da minha vida. Os dez escravos que me serviam, que foram libertos por mim naquele dia. Eles estavam mais felizes que eu. Eram os convidados mais entusiastas da festa. A minha atitude de alforriá-los marcaria certamente os meus intentos com relação a estas questões da abolição.
Por um instante deparo-me com um papel que vai entrar para a histórica com o nome de Lei Áurea. Ela é a consumação de trezentos anos de luta dessa gente que não tem vida própria, mas sempre soube guardar sua dignidade. Já antevejo os festejos, os batuques, as cantorias outrora reprimidas pela dor do banzo e limitada pela força do tronco e da chibata. Meu Deus, perdoe nossa demora! Como mantivemos a escravidão por todos esses anos? Que as almas dos que já se foram, sob o peso dos castigos que a eles nós impusemos tenham piedade de nós. Um arrepio passa por meu corpo, agora trêmulo como a oferecer um consolo ao filho, depois que o castigamos sem merecimento. Sei que esse papel não resolve todos os problemas, e sei que ele não significa apenas a minha vontade. É a concretização de um discurso e de uma votação de tantos que, como eu, querem o fim imediato de tanta maldade. Devolvo a todos os agora ex escravos a responsabilidade e a autoria desse documento. Não fui eu, nem o império que oferece a liberdade. É sua própria luta, é fruto de seus incêndios a engenhos, de suas fugas e de suas organizações em quilombos.
Recordo-me com saudade da minha ama de leite. Como ela brincava e era carinhosa comigo. Ah, se ela pudesse estar aqui do meu lado, e votasse a me chamar de minha princesinha. Ela já está de lá e deve estar sorrindo, como sempre fazia. deve ter um sorriso feliz, de liberdade, de satisfação. Sua princesinha agora crescida, virou mulher, e nesta mesa assina aquela que sempre foi sua vontade realizar. Ah, e minha Rosa deve estar explodindo de felicidade com a princesa crescida e bem educada. Queria agora aquele seu abraço que sempre oferecia quando eu chorava e estava triste e desanimada da vida.
Embora fosse realmente difícil conduzir uma nação sem a experiência da escravidão, não podíamos ter admitido tamanha violência e tamanha desumanidade. Hoje eu que sou escrava. Embora ofereço a liberdade a tantos outros, sinto-me presa num passado que minha família permitiu. Mesmo sabendo que fiz bastante, sei que ter feito algo mais. A escravidão envergonha-me bastante. Volto-me às grandes fazendas desse país, de gado ou de café, e revejo com horror, troncos, gargalheiras, palmatórias, sangue, suor, lágrimas... Deus, perdoe-nos novamente! Em cada casa, em cada janela desses casarões centenários, repousa ao menos uma lembrança de alguns que se foram.
Pela janela posso ver o horizonte tão belo deste império, agora completamente livre. Contemplo torres de igreja e vejo ali tantos negros trabalhando duro, ao sol e chuva, frio ou calor, sempre sob e jugo da falta de liberdade e da arbitrariedade cruel de senhores e senhoras sem escrúpulo algum ou sem o mínimo de piedade e misericórdia.
Enfim, tudo está acabado e um novo tempo se anuncia. Nós permaneceremos escravos na alma, por nossa falta de generosidade. São tempos que, de agora em diante precisarão ser construídos, refeitos, repensados e realizados. Resta-nos agora propiciar a cada um o seu lugar nessa sociedade que nunca os aceitou como gente, e os rejeitou. E eu sou apenas uma mulher com o poder nas mãos, só a Princesa Isabel Cristina Leopoldina de Bragança, que continuará com sua pena na mão, a tomar novas decisões para que continuem libertando os homens, mulheres e crianças, que agora vão lutar contra outra escravidão, talvez tão cruel e desumana que aquela em que estavam subjugados até hoje.
Volto meu olhar para estas poucas palavras, de significado infinito e de alcance em todo o império do Brasil. Queria eu que essa pena, ainda úmida como meu rosto, pudesse continuar manchando papéis com outras palavras várias de liberdade para tantos ainda presos por circunstâncias inúmeras. Penso no meu pai, que não obteve essa graça e nos meus filhos, que poderão conviver numa nação melhor do que aquela em que passei minha vida. Esta, talvez seja a maior herança que poderemos deixar para a posteridade. Um nome, uma lei, uma lembrança.
Fecho o papel . que agora ele se cumpra e leve a liberdade a todos os cantos. Aqui fico eu, embora livre, nesta casa fria e sombria, sem a alegria dos tambores e sem a esperança de tempos melhores. Meu destino é uma linha reta, sem curvas, sem luta, sem expectativas, muito diferente da vida dessa gente que agora, mesmo sem recursos e sem assistência social, vai lutar para conseguir seu espaço e fazer acontecer seu destino. A minha segue o rumo traçado pela tradição. Sem graça.