Flória, a amante do bispo

                    Quando me arranhavas com tuas
                    carícias, estavas também rasgando
                    minha alma.
                                             Flória Emília

     Nas cartas de amor, é o coração que fala, e ninguém segura um coração apaixonado. Portanto, guarde-as com carinho.
     Falei, por acaso, algo de novo? Não. Repeti, como dizia o Nelson Rodrigues, o "óbvio ululante". Faz mal não.
     Às vésperas do Dia dos Namorados, estou, apenas, querendo enfatizar o cuidado que devemos ter com as cartas de amor.
     Cuidar, para que elas não sejam extraviadas e muito menos rasgadas.  Não interessa se elas provocam ou não ciúmes.
     Tenho amigos e amigas que choram o desaparecimento das cartas de amor que um dia escreveram ou receberam.
     Digo tudo isso, e pergunto: será que também guardei as cartas de amor que andei recebendo e escrevendo pela vida afora? A resposta eu dou depois.
     Por falar em cartas de amor, deixem-me revelar uma segredinho. Aconteceu nos idos de 1952-53, lá em Fortaleza. 
     Eu era bem novinho. Deixara o seminário, fazia poucos meses, e escrevi minha primeira carta de amor!
     Nem preciso dizer o quanto caprichei no manuscrito, na redação e nos galanteios à mulher querida, minha primeira namorada.
     Estranhamente, creiam, minha carta nunca chegou às suas delicadas mãos.
     Notícia dela ela só teve através de inquirições enciumadas de sua digníssima gentora, em cujas mãos - pasmem! - a missiva foi parar!
     Eu só soube dessa história quase meio século depois. 
     Em um cauteloso e-mail, recheado de boas lembranças, ela me contou tudo.
     Lamentamos o acontecido. E mais ainda a impossibilidade de fazer minha carta reaparecer. Se sua mãe não a rasgou, levou-a consigo para a eternidade...
     E por falar em carta de amor, para rabiscar esta croniqueta, procurei Santo Agostinho.
     Não, vou dizer melhor: procurei Flória Emília, a mulher que amou ardentemente Aurélio Agostinho, confessando sua extremada paixão numa carta a ele - já sagrado bispo de Hipona - enviada.
     São revelações doridas, mágoas de uma mulher que, de repente, se viu abandonada pelo seu amante, com o qual vivera doze anos e com ele tivera um filho.
     Agostinho deixou-a bruscamente quando decidiu abandonar "os prazeres carnais" e se entregar a Deus, numa conversão incondicional e irreversível.
     Flória foi praticamente esquecida por Aurélio - seu "brincalhão e provocante companheiro de cama", como, na carta, ela o chama - até nas suas
Confissões , sua autobiografia, livro famoso, desde seu aparecimento, entre 397-398.
     O escritor Jostein Gaader (autor de O Mundo de
Sofia), no livro Vita Brevis, põe à disposição dos leitores o teor completo da carta de Flória Emília, a concubina de um dos maiores e mais influentes santos da Igreja Católica, nos seus tempos de "irrequieto amante dos prazeres sensuais".
     São muitas e todas belas as manifestações de amor de Flória por seu ex-amante.
     Escolhi esta: "Podes lembrar ainda como tocavas em todo o meu corpo e parecias apertar cada broto antes que eles se abrissem?
     Como gostavas de me colher!
     Como te deixavas intoxicar com meus perfumes!
     Como te nutrias com meus sucos!
     E então foste embora e me vendeste pela salvação de tua alma. Que infidelidade, Aurel, que culpa! Não, não creio em um Deus que exija sacrifícios humanos.
     Não creio em um Deus que destrua a vida de uma mulher para salvar a alma de um homem".

     Santo Agostinho, filho dileto de Santa Mónica, a sofredora, por que fizestes isso com Flória Emília?
     Será que o teu Deus te perdoou?
     Inteligente como tu eras, bem que poderias dela ter te afastado sem machucar seu coração. O coração de tua ex-amante e mãe do Adeodato, o filho que ela te deu...
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 06/06/2011
Reeditado em 06/06/2011
Código do texto: T3018049