Lobão e o livro dos meus dias

Rock, febre, beijos e abraços: assisti à ressurreição

do polêmico cantor e compositor.

Não é mais uma das minhas crônicas fantásticas envolvendo artistas. Isso aqui que vou contar aconteceu mesmo. É sobre meus dias. E constitui um episódio intenso e engraçado da minha vida pacata. Mas não deixa de ser uma coisa, de certa forma, banal. Farei o possível para ter uma escrita o mais biográfica possível e o menos literária – ao meu modo, pois não há outro jeito melhor e não disponho de muitas saídas narrativas a não ser aquela que traz minha estética pessoal. Era o ano do lançamento do disco e do DVD Acústico MTV do Lobão (que posteriormente ganharia um Grammy pelo trabalho). Turnê de lançamento. Lobão empolgadíssimo com sua ressurreição na mídia. Ressurreição esta que foi implacavelmente criticada por muitos que já estavam acostumados e felizes com a postura independente do cantor, distante dos grandes meios. Daquela sua fase de músico “indie”, que atraiu vários adeptos, saiu a obra-prima que é o disco A Vida é Doce, vendido nas bancas de jornal. Eu tenho um.

Show do lobo em Paracambi, município do Rio de Janeiro, que fica entre a Baixada Fluminense e a serra que leva a Mendes. Eu, então vocalista da banda de covers de rock chamada Chave Inglesa, com apresentação marcada para a mesma noite. Meu carro velho quebrado na garagem. Dois dias de febre, dor de garganta e dor no corpo inteiro. Não tocar no dia do Lobão seria uma pena, pois era o melhor dia da feira cultural. E tamanha seria a frustração dos amigos de banda ao saberem que tudo o que havíamos ensaiado não poderia ser executado, por conta da minha condição física completamente debilitada. Dúvida cruel: ir ou não ir? Na última hora decidimos, eu e minha mulher, que iríamos assim mesmo. Bravo e valente, fui. Fui pelo cumprimento do dever, pela amizade com os jovens amigos músicos tão empolgados, e também por Lobão. Que ousadia. Fomos eu e ela de ônibus. Fui todo embalado pra viagem: boina, cachecol. Analgésicos à vontade. Muito fria a noite. E lá fomos, minha corajosa esposa e eu. Eu como artista. Ela como enfermeira. Levei uma bolsa tira-colo com um daqueles pedestais de metal – devem saber o que eu estou falando – para colocar uma pasta preta, com algumas letras que eu não sabia de cor. Objetos indispensáveis para mim, pois o repertório de minha banda era todo em inglês, que não falo e apenas papagueio. Vá que no palco não tivesse um negócio desses me esperando. Sei lá... Era o palco pobre. Então, prevenido, levei este peso na minha bolsa. Uma ponta da armação de aço saltava para fora da bolsa, podendo parecer que eu carregava uma sub-metralhadora. No ônibus, ainda meio febril, eu pensava “– Vou suportar isso? Sairei vivo dessa?”.

Chegamos à festa. Show do Lobão à meia noite. O da minha banda seria somente às 3 da madruga, no modesto palco 2, fechando o evento naquele dia. Frio. Sereno. Cachaça com mel. Balas de gengibre. Aspirinas. E muita força de vontade. E força física que eu tinha que buscar do coração, já que a bolsa começava a pesar e eu não tinha um camarim onde deixá-la segura, sendo o palco 2 meio bagunçado e eu não havia encontrado ninguém para guardar minha bolsa no carro, ou então, se encontrei, o meu estado meio convalescente, meio bêbado, não me deixou raciocinar no sentido de solucionar aquele simples problema. Vamos ao Lobão. Ficamos bem pertinho do palco: eu, minha mulher e minha bolsa que parecia ter pedras dentro. Começa o show. Antes dos primeiros acordes de El Desdichado, música que abria, minha mulher fala bem alto de forma que o lobo pudesse ouvir “– Lobão, você está tão sério!”. E ela não é disso. Ela é o contrário de uma pessoa espalhafatosa. O show começa com tudo. Todo o som está muito bom. A banda perfeita. O público, meio animado no começo e super animado ao final. Gente amando tudo, como eu e ela. E também alguma gente xingando o Lobão. Um gritou “– Lobão, seu vendido!”. Outro “– Lobão, você é um cordeiro!”. Mas que vontade de dar uma porrada no cara que falou isso. Eu e ela só queríamos curtir um grande show de um dos grandes artistas da geração 80, que vivemos e acompanhamos com muito gosto. Mas, de um modo geral, no fim das contas, o público adorou. Ficou ali até o fim, apesar de uma chuva fina que já caia. Ele fecha a apresentação com Revanche, e, levantado em brinde um copo de uísque ele fala “– Taí, rapaziada, gostei! Valeu, porra!!!”, enquanto o público em êxtase faz o coro “Uoô, uoô, uoôôô...” que fecha a música. Lobão havia, enfim, ressurgido como grande artista e eu estava ali a testemunhar a felicidade de sua volta para os braços do público.

Pinta a idéia de irmos ao camarim. Havia a possibilidade. E, sendo sincero, eu já tinha essa idéia. Tanto, que levei na bolsa uma cópia impressa de um texto que havia escrito para o site Crônicas Cariocas, defendendo a volta do cantor ao mainstream, e falando de outras coisas “associadas” como Sergio Sampaio e Faustão, na intenção de, quem sabe, poder entregar minha humilde folha de papel a Lobão. Mas sem pistolão, não seria tarefa fácil entrar naquele camarim. Até que minha mulher usou algum tipo de charme com um dos seguranças e nos colocou na fita. O cara da porta do trailer disse, ao entrarmos, para ficarmos no máximo 5 minutos. Entramos. Lá dentro, Lobão, blusa trocada, aparentemente de banho tomado, eufórico pela impecável apresentação que acabara de fazer e ótima recepção do público. Agora vem a parte engraçada – sobretudo da forma como minha debochada esposa normalmente relembra a história em conversas aqui em casa. Eu disse a ele “– Lobão, eu não vim aqui tirar fotos nem pedir autógrafo...”. Nesse instante Lobão dá um passo atrás, como quem pergunta a si mesmo em pensamento “– Não veio pedir autógrafo? Com essa bolsa e essa coisa de ferro dentro... Caralho... Esse cara vai atirar em mim!”. E, realmente, eu não estava muito diferente de um terrorista. Minha esposa, quase intuitivamente, toma a frente e faz elogios à apresentação, com sua voz mais doce e sincera “– Lobão, que show lindo você fez!”. Lobão então se acalma com a presença dela e aquieta o corpo confuso, respondendo calmo e feliz “– Muito obrigado!”. Pego a minha folha e lhe entrego, dizendo a ele que o que eu queria é que ele soubesse que muita gente, como eu, aprovava o fato de ele ter ido cantar no Faustão. A questão é que eu via um simbolismo importante naquele ato. Aí a coisa ficou bacana. Ele leu voluntariamente o começo de meu texto, gostou de ver o nome de Sérgio Sampaio, e ocorreu algo extraordinário para mim: rolou uma pequena conversa que não pareceu muito coisa de fã e ídolo (mas era, claro), onde falamos sobre o Faustão. Ele disse que o Faustão é um cara muito legal e eu lhe contei que eu e minha esposa choramos ao vê-lo cantando Vou Te Levar, no programa dominical. Então Lobão me deu um abraço absurdamente apertado, como se velhos amigos fôssemos. Abraçou também minha mulher e lhe deu um beijo. Saímos pisando nas nuvens. Ela, como uma adolescente, passaria semanas repetindo “– Ele me beijou! O Lobão me beijou!”. O resto daquela noite foi tudo de bom. Eu parecia curado. Passeamos felizes pela festa. Depois, eu e minha banda fizemos um show para bem poucas pessoas. E vou te contar: modéstia à parte, eu acho que a Chave Inglesa era o máximo. O repertório agradou. Só não pude cantar Overkill, do Men at Work, por causa dos agudos, estando eu com menos de 50% da minha potência, pra ser otimista. Foi um pequeno e singelo show de covers – só isso. Uma breve excursão por vários estilos de classic rock. Pequenos guerreiros da noite fria que lá estavam curtiram bastante. Eu, do palco, podia sentir isso com clareza. Dentre eles alguém que não me conhecia e nem eu a ele, e que hoje é um dos meus grandes amigos. Ele me conta sobre como aquela noite foi boa pra ele, que estava com seus amigos bebendo e curtindo os vários shows de rock, incluindo o da minha banda, que chamou a atenção por ser a única a tocar música antiga.

Hoje, aqui na mesa do computador, o livro 50 Anos A Mil, do Lobão, que ela está se preparando para ler. Na época do Acústico eu e ela estávamos apaixonados pela canção Vou Te Levar. Aquilo estava emocionando. Disso partiu a já antiga fotografia que ilustra esta crônica. Na foto, o que se vê no monitor é o manuscrito da canção, mais Lobão e sua esposa se beijando. À frente dessa imagem, eu e minha mulher fazemos o mesmo. Gosto da foto.

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P. S. : texto com a foto ilustrando, no site Crônicas Cariocas.