"DEIXA NA PORTARIA?"

Dia desses eu conversava com uma senhora pouco mais que sexagenária que nasceu numa cidadezinha do interior do nordeste, cuja família veio para São Paulo quando ela se casou.

Embora tenha ela vindo para cá com pouca idade, dizia-me ter muitas reminiscências da dinâmica mais humanizada de vida que havia por lá, principalmente naqueles tempos, em que as pessoas amigas se relacionavam "mais de perto", com mais tempo, mais paciência e quiçá mais apreço e solidariedade.

Tempos em que seus amigos da cidade, ou mesmo os vizinhos da rua frequentavam as casas com mais intimidade e sem protocolos, abriam as geladeiras e diziam "deixa ver o que você tem para eu comer, só isso?- que fome, me frita um ovo, vai!", me relatava ela num tom incrivelmente amigável, humanizado e saudoso.

Depois se queixava que aqui em São Paulo pouco vemos sequer os vizinhos de porta, as casas já são verdadeiras fortalezas, e os condomínios também têm suas fortificações nas portarias, embora muitas vulneráveis.

Tudo é na portaria...a vida acontece ali!

Parei para pensar, e de fato é isso mesmo. As pessoas lutam por sossego, por um tempo com elas mesmas.

Andam tão cansadas da correria daqui que já não têm interesse, ou mesmo tempo para receber ninguém, sequer algo da sua logística cotidiana que possa se deixado na portaria. Que praticidade, e quão pobres porteiros!

Também e mais fácil ir a um restaurante comemorar algo familiar, aonde as relações da família moderna têm se descaracterizado um tanto.

Fato é que não podemos deixar nossas relações pessoais nas portarias, certo?

E coincidentemente ao que acabara de ouvir daquela senhora, ontem o Globo Repórter fazia a chamada à questão da solidão, tema interessante sim, que a meu ver é algo que as pessoas procuram, ou melhor, por aqui é quase uma bênção em certas horas.

A reportagem global caminhava bem quando lá pelas tantas se perdeu no caminho através da exemplificação da tal solidão da modernidade, a confundi-lá imperdoavelmente com a Depressão, entidade totalmente distinta.

Nessa avalanche de diagnósticos vindos dos "doutores da mídia' que vivemos nos nossos dias, nem tudo que se coloca nas telas é crível, há que se tomar muito cuidado com o que se ouve e no que se acredita.

Ali se expunha algumas pessoas e suas entidades patológicas como "solidão" de maneira muito discutível do ponto de vista médico e até do ponto de vista ético, penso que sim.

Porém solidão, se não é algo tão bem vindo socialmente falando, em certas ocasiões se torna mister.

Por exemplo, nós que escrevemos precisamos dela par nos introverter para depois nos extroverter nas letras. Escrever é um entrar e sair de si e em si mesmo que não tem fim...Todo artista precisa da boa solidão.Sem ela não existimos.

Outrossim se solidão por vezes é escolha, depressão "também" é imposição genética, um campo complexo demais para se discutir em alguns minutos de mídia. Depressão é para quem pode...não para quem quer, diferente da solidão.

Enfim, percebam claramente, há os que sozinhos são uma multidão e há os que na multidão ...são sempre muitos sozinhos.

Há companhias que podem deflagrar depressões muito mais que boas solidões. Difícil é perceber tal dinâmica a tempo.

Eis a grande diferença entre ambas, portanto.

Há os que enxergam nos solitários algo degradante. Não vejo assim.

Penso que é preciso coragem para se postar e , às vezes, saber se isolar e descansar do todo.

Outrosim, que atire a primeira pedra quem, ao menos uma vez em meio ao presente mundo, não se sentiu algo sozinho.

Se houver alguma pedra , por favor, deixe-ma na portaria.

Eu a recolherei mais tarde.