Segunda-feira.
Aquele dia era segunda-feira - mais uma. No céu, havia tantas nuvens carregadas que quem tivesse bom senso, de certo, haveria de se prevenir matando um dia de trabalho ou... Digo, levando um guarda-chuva. Na verdade, José não tinha guarda-chuva e, muito menos, chance de faltar ao serviço, visto que ele tinha apenas 12 anos de idade e a responsabilidade de ajudar nas despesas de casa. Trabalhava como repositor num mercadinho ali perto. Pode-se dizer que seu corpo franzino sumia em meio às caixas e mercadorias. Tinha dois irmãos mais novos, um com 5 e uma com 2 anos de idade. Sua mãe, ex responsável pela faxina na casa de uma madame da Zona Sul, descobrira a leucemia há pouco mais de um ano e recebia como prêmio algum auxílio do governo para se sentir, teoricamente, menos desesperada, o que não funcionava. Seu pai, auxiliar de produção em uma empresa de materiais químicos, trabalhava sem descanso em excesso de horas extras e se sentia um lixo por mal pôr comida na mesa. Mas nada disso importa...
Aquele dia era segunda-feira e a rotina árdua chamava José para o mercadinho. A esperança de sempre inflamava seus olhos tristes e seu coração pesado: "Talvez algo de bom possa me acontecer. Talvez algo de bom...", pensou consigo. No caminho, enquanto se distraía com seu pensamento ingênuo, sentiu um estalo ao pisar em alguma coisa estranha. Olhou para baixo e viu ali um papel, um envelope. Olhou em volta para ver se aquilo poderia ter caído da mão, do bolso ou da bolsa de alguém, mas não. Ele estava sozinho ali. Sozinho com o envelope. Olhou mais atentamente àquilo e umas palavras estavam rabiscadas no papel. Letra de médico, só podia ser... O nome do sujeito parecia ser Csnvaldo ou, Avnaldo, Agnalgo, Oswaldo ou, então, Osvaldo! Era isso mesmo: Osvaldo Nogueira da Conceição. O endereço ali em baixo foi mais fácil de entender: Rua Aldeia Vinte de Setembro, 298, Vila Guilherme, São Paulo - SP. Curioso, olhou pelas frestas do envelope e não conseguiu ver o que havia dentro. Ele tinha que saber se o que constava ali dentro era de valor ou não. Se valia a pena ou não entregar ao destinatário aquele documento. Tentou-se, não resistiu e, por fim, abriu o envelope. Para sua surpresa, havia mais dinheiro ali do que o que seus pais e ele próprio ganhariam ao longo de seis meses. Abismado, José olhou de novo e mais um vez. Se escondeu por entre os arbustos para poder contar o dinheiro e provar para si mesmo que aquilo era realidade. Seria esse o "algo bom" que ele implorara a Deus?
José vivia um dilema: sua honestidade inabalável. Quando se deparou com aquele envelope e tomou conhecimento daquela realidade impossível, viu-se em meio a esse mar de pensamentos: Se pegasse o conteúdo do envelope do Sr. Osvaldo para si, poderia, certamente, pagar um tratamento adequado para sua mãe sem passar necessidades graves em troca; mas e Deus? Será que ele o perdoaria? Pensou em sua mãe, mas não só na parte física de sua mãe, não só nos cancros de sua mãe, mas no espírito, nas suas palavras. Desde cedo, ouvira de sua progenitora palavras sobre caridade e os conceitos básicos da honestidade. Ao olhar de novo para o envelope, teve certeza sobre a coisa certa a fazer. Procurou no mapa da padaria essa tal de Aldeia Vinte de Setembro. Nem Vila Guilherme ele conhecia... Fez as contas e viu que precisaria de um ônibus, um metrô e um pouquinho de suas pernas para chegar ao local da glória introspectiva.
Uma hora e meia depois, José chegou ao endereço marcado com letra de médico e tocou a campainha. Esperou ancioso e curioso, mas ninguém apareceu de imediato. Tocou outra vez a campainha e nada... Decidiu, então, deixar o envelope embaixo da porta e saiu andando de volta à sua rotina, ao seu trabalho. Se o Sr. Osvaldo morava realmente lá e se, de fato, teve de novo contato com seu envelope, José não soube jamais, mas quanto à sua consciência... Bem, isso não importa. Deixa para uma outra hora.
Renato F. Marques