CEGUEIRA
O sol emoldurava a manhã daquele dia. Era fim de outono, e aquele friozinho animava a manhã que começara com uma alegria plena da natureza. Eduardo descia a rua de sua casa rumo ao trabalho. Uma flor caía de uma árvore como sempre acontece em todos os outonos. Ele descia em passos firmes, pois o sono da noite havia sido pesado, e a cama quente era um convite a dela não sair. Mas, o dever é algo mais importante. Encontra pelo seu caminho as pessoas de todo dia, sempre indo para os mesmos lugares, nas mesmas direções, sempre apressados. São rostos que se cruzam apenas. Não há sorrisos, não há lágrimas, não há expectativas. Somente cumprem sua jornada diária, seus afazeres e suas preocupações cotidianas.
Afora, a natureza oferece um lindo espetáculo visível apenas àquelas que se atém à vida e à beleza da criação à sua volta. Poucos. Vemos e não notamos nada. Olhos apressados, e lá se vão mulheres com seus filhos de colo, homens e mulheres em busca do seu salário mensal. Eduardo é apenas mais um em meio a tantos outros, que passam pelas ruas, com olhos fixos no caminho diário de casa para o trabalho. Todos têm uma vista parcial, incomodada pelos trabalhos tantos e pelas obrigações inúmeras. Eduardo não vê os pássaros que fazem festa despreocupados, nem as nuvens que brincam de variadas formas no céu. A humanidade está se tornando uma plateia apática ao espetáculo da vida. O tempo nos consome e nos consumimos no tempo perdido da vida. Quando nos damos conta, já aparecem as primeiras rugas, os cabelos brancos e a vista já não mais enxerga a beleza do que está à nossa volta.
Há tanto o que ver, há tanto o que sentir. Cheiros, perfumes, flores, montanhas, águas, caminhos... Cegamos a nós mesmos na indiferença à vida. Ainda há os que se cegam para os humanos. Somos incapazes de ver as pessoas à nossa volta, seus sofrimentos e dores, angústias e temores. Fechamo-nos em nossas casas, no nosso individualismo. Fechamos os olhos às maravilhas criadas por Deus.
Eduardo feriu-se no trabalho. Sua perna direita quebrou-se e ele fez seu retiro em casa. Da janela ele observa a árvores que ontem permitira a queda de uma flor. Outras estão caindo. Eduardo vê as nuvens e imagina animais, brincadeiras e sonhos. Seus filhos estão em casa e fazem um barulho agradável. Ele precisou de um motivo realmente forte o suficiente para ver. A cegueira da alma atinge a humanidade como nunca. Às vezes é mesmo melhor não ver, é cômodo não ver. Mas é injusto: com Deus, em não admirar a maravilha por Ele criada, e com o outro, em não enxerga-lo na sua dignidade humana.
Eduardo viu, naquele mês de deserto interior. Via porque aceitava ver, quis ver. Desligou-se de seus caminhos, de sua TV, de seu computador (maiores causas de cegueira) e de tudo o que distrai. Ficava ele na janela a observar todos os que ele encontra pelo caminho diário. Percebeu a beleza da vida nas coisas mais simples. Enxergou rostos, sorrisos, preocupações estampadas na face e viu a natureza com todo seu encantamento.
Um mês depois, Eduardo desce a rua rumo ao trabalho. Novamente refaz o mesmo percurso, encontra tudo como sempre foi. Ele segue seu caminho diário. Novamente cego.