PESADOS COTURNOS

A histórica revolução de 31 de março de 1964 deu um verdadeiro nó cego na minha cabeça de nordestino interiorano. Afinal de contas eu tinha somente meros treze anos de idade e vivia um adolescência deveras castrada pelos tempos dominantes, moralistas e ditadores da época, além do fato de não existir transmissão de TV em minha cidade nem muito menos jornal trazendo as notícias de longe, custando essas a chegar até nós pela distância que o telégrafo sofria para percorrer. Sim, a telegrafia se fazia o único meio de saber o que se passava no mundo. Vivíamos num atraso triste. Como não ser ingênuo e provinciano num época em que não se falava em telex, vídeo cassete, computador, internet, telefone celular, todos esses fenômenos da comunicação que só chegariam ao interior brasileiro mais de trinta anos depois?

Por essas razões bebíamos da inesgotável fonte dos militares com a sequidão dos inocentes enfileirados no matadouro. Se eles afirmavam algo, o que quer que fosse, em suas notas através das emissoras de rádio então era absoluta verdade. Quem se atreveria a contestar, pelo menos em nosso meio abandonado e beradeiro? Em eles dizendo que comunistas comiam criancinhas e matavam pessoas inocentes pelo prazer de matar, acreditávamos piamente, por conseguinte passávamos a nutrir um ódio indizível contra quem professasse idéias marxistas.

Nos primeiros anos pós revolucionários muitos cartazes exibindo fotos dos assim considerados comunistas foram afixados nos correios e outras repartições federais, informando a população seus nomes de guerra e pedindo aos "patriotas" para denunciar às autoridades locais caso eles fossem vistos. Cioso do meu patriotismo inocente, revoltava-me contra os tais terroristas e olhava os tais cartazes com um misto de temor e ódio. Aqueles eram homens e mulheres dispostos a tudo para sublevar a ordem constitucional em minha pátria por isso não pareciam humanos, quiçá fossem feras travestidas de humanidade para corromper a juventude com suas malditas idéias. Quanta inocência povoava nossos pensamentos pueris!

A cada prisão de algum "desgraçado comunista", como naquele tempo eu imaginava eles fossem e como eram cognominados os de esquerda pela mídia direitista, vinha-me o alívio, o suspiro de satisfação porque tratava-se de um a menos a transtornar o cotidiano do meu País. Na esquecida cidade onde eu vivia a polícia fardada, por seus soldados e delegados, mandava e desmandava de forma quase absolutista. Temia-os igualmente pelo poder que detinham. Prendiam sem mais aquela quem eles quisessem, e do alto do "sabe com quem está falando" polícia e filhos ou parentes de militares atemorizavam qualquer cidadão de bem. Dessas picuinhas, no entanto, eu pouco tomava conhecimento. Para nós habitantes do esquecido universo nordestino restava somente um patriotismo ditado amplamente pela ditadura e seus coturnos pesados. Como éramos ingênuos!

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 01/06/2011
Código do texto: T3008634
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