Dia de Cão
Manhã de sol. Assim que acordo, olho para o céu, espreguiço-me e tomo um pouco de água. Estava com sede. Estendo meu olhar para os lados, verificar como as coisas estão, se está tudo em ordem. Ouço o movimento da rua, carros passando, gente conversando, caminhões barulhentos. Sinto cheiro de fumaça, provavelmente desses caminhões enormes que circulam por aí. É sempre assim, uma correria que nunca para.
Dou mais alguns passos, mas minha corrente me segura. Tudo bem, estou acostumado a ficar preso aqui, neste lugar. Ouço pessoas conversando. Conheço as vozes. Daniel e Lilian, meus donos. Conversam sobre uma certa reunião com alguém importante. Daniel faz parte de uma empresa. Não sei qual sua profissão, mas é renomado o bastante pra trocar de carro todo ano. Percebo certa ansiedade na voz dele. Ouço palavras como “promoção”, “aumento”. Parece que trocar de carro vai ser algo ainda mais freqüente se ele conseguir o que quer.
Lilian chama as crianças para o café. Daniel mal consegue comer, de tão ansioso que está. Ele tem que estar no local previsto às 10 da manhã. Pontualidade, correria, trabalho, carros... Sinceramente, não entendo os humanos. Eu tenho tudo que preciso ao meu redor. Mas os humanos sempre querem mais e mais. Acho que é isso que se chama ‘ambição’.
Sento-me ao lado da minha pequena casa. Observo alguns pássaros voando. Há borboletas no jardim. Meus donos não veem isso. Percebi que eles nunca pararam para olhar ao seu redor. Minha concentração é quebrada com vários gritos que vêm de dentro da casa de meus donos. Estão bravos por causa das notas baixas que Danielzinho havia tirado no colégio. Ouço Daniel falar que todo o investimento em colégio particular tem sido em vão, pois tem um filho ‘preguiçoso’ e ‘burro’. Não sei como pode um pai falar coisas assim para o filho.
Daniel sai de casa furioso. Entra em seu carro e sai. Anna, a filha mais nova, diz ter medo de seu pai quando ele está assim. Danielzinho, já pronto para ir ao colégio, sai de casa e entra no carro. Anna vai se arrumar. Mas demora. Como dizem os jovens, ela fica ‘se produzindo’. Sei disso por causa dos comentários que ouço quando estou entre ela e suas amigas. Um monte de quinquilharia: brilho, gloss, batom, sombra e sei lá mais o quê. Como se isso mudasse o caráter. Lilian se irrita com a demora. Anna nem parece uma garota de 14 anos. Sai toda pomposa, parecendo que vai a um desfile de moda. Eles saem. Resolvo dormir.
Passa algum tempo. O barulho do portão me acorda. Vejo o carro de Daniel entrando. Lilian já estava em casa, provavelmente dando ordens à empregada. Daniel sai do carro bate a porta com força e entra em casa furioso, dizendo que a proposta de trabalho que ele havia apresentado fora ignorada pelos seus superiores. A promoção que ele tanto queria foi dada a um empregado que estava há menos de dois anos nessa empresa. Isso deve ser a chamada ‘frustração’. Mas não vejo que culpa as outras pessoas têm por causa disso. Olho para os lados e percebo que a corrente havia sido desprendida da minha coleira. Pensei que se eu desse um pouco de carinho, Daniel se acalmaria e tudo voltaria ao normal. Levanto-me e entro na casa, à procura dele. Os gritos e o perfume, dignos que causar dor de cabeça a qualquer um, me guiam até ele. Ao me aproximar, tento abraçá-lo, ficando em pé, apoiado nas minhas patas traseiras. Mal consegui tocá-lo. Fui empurrado e caí de costas no chão. Não faz mal, eu só queria ajudar. Apesar de não ter culpa alguma pelo acontecido, ele acabou descontando em mim também.
Entro em minha casa, chateado. Tento dormir, mas a discussão sem fim continua e isso me incomoda. Levanto-me olho pra fora e vejo como o céu está belo. Bebo um pouco de água e me deito ao lado de minha casa. Lilian sai de casa, chorando. Encosta-se na parede, inconsolável. Desta vez, prefiro não me aproximar. Ela vem até mim, olha em meus olhos e me abraça. Como se pedisse desculpas pelo empurrão que Daniel me deu. Eu não tenho o que desculpar, não guardo mágoas. Talvez por isso eu seja feliz.
Anoitece. Hora do jantar. Daniel, ainda chateado, discute com Lilian, briga com os dois filhos e diz que não estava com fome. Sai pela porta e a bate com força. Falando sozinho, diz que preferia não ter acordado, pois tinha tido um dia de cão. Ledo engano. Se ele tivesse a vida que tenho, seria feliz. Eu queria que ele tivesse um dia de cão, para se alegrar. Mas jamais, por motivo algum, quero ter um dia de gente. Isso deve enlouquecer qualquer um.