Devaneios

Devaneios

Ontem eu tentei comer um boi.

Tentei ver realmente se eu conseguiria.

Imaginei primeiramente os filés e as costelas, procurando agradar ao paladar no que entendo serem as carnes mais macias e saborosas, respectivamente.

Minha proposta, absurda, seria a de uma degustação única e ampla, para em depois hibernar por esse clima tropical em um tempo de aproximadamente dois anos.

Eu, previamente, chamara a tal aventura de “A Dieta do Boi”.

Minha lógica afirmava que todo o boi dentro do estômago levaria a mim (não considerando o peso da carne do boi) a ficar um pouco menos pesado na balança.

Mas claro, com o boi na barriga eu não sentiria fome por um bom tempo e, portanto, à falta da alimentação pela falta da fome, o emagrecimento desejado.

Por óbvio a balança indicaria um peso absurdo e aqueles que não soubessem da dieta perceberiam o aumento exagerado do que pensariam ser o meu peso e , eu, tranqüilamente convencido, saberia que aquele peso devia-se ao boi e não a mim. E o corpo emagreceria pela falta de apetite.

Não deu certo.

E interessante é que mesmo não dando certo eu não fiquei preocupado porque não deu certo.

Normalmente nós ficamos preocupados quando as nossas idéias não dão certo.

Ainda assim, permaneci observando e constatei as incoerências que levariam a degustação a não se confirmar.

Primeiramente o boi era enorme se comparado ao tamanho da boca.

Seria impossível começar pelos filés e costelas tendo o boi uma harmonia intra-matéria que não permitia o acesso a regiões interiores sem ferir o que seria a identidade do boi.

Pensei no sabor, quantidade de sal, o cozimento e até no jeitão do boi olhando para mim.

Também o banho que o boi precisaria tomar.

Essas e outras idéias que a gente tem, que tentam soluções e soluções, fizeram com que, diretamente, eu me confrontasse com a descoberta da realidade do mundo dos pequenos pedacinhos.

De pronto, concluí que durante uma vida inteira os bois foram sendo consumidos dentro de um processo chamado de cadeia alimentar, sempre aos pedacinhos, para a tristeza de religiosos, porém necessário no suprimento de proteínas e energias.

Em verdade, nós mesmos somos construídos de vários pedacinhos que adquirem em uma existência aspecto de criatura monobloco.

Um boi não é um pedaço único de carne.

É o conjunto de vários pedaços soprados pelo divino e que lhe dá a personalidade do boi.

Assim é o boi.

Eu que sou gente e que apenas me identifico como gente, não desconheço depois de tanta reflexão, esses pedaços de mim que fazem parte da estrutura de mim mesmo.

Dentro dessa abordagem simplória, vou imaginando essas histórias da vida da gente e das gentes que vive com a gente, procurando, por analogia, aproximar as histórias e reduzi-las ao meu tempo.

Reduzir a esse tempo que já foi provado que não existe, mas que existe enquanto existe alguém que passa por ele.

O tempo é eterno, não passa, mas eu passo pelo tempo que não passa.

Esse tempo por que passo, se a lógica dos pedacinhos se solidifica, deve ser formado por vários pedacinhos de que vou passando.

E eu se vou passando por esse tempo que não passa, observo e visualizo um mundo de pequenos pedaços e faço deles as pedras que pretendo seguras para um caminhar sereno, constante e feliz.

Esse passar por essa percepção de tempo vai fazendo a gente constatar que aquele algum tempo foi bom, e algum outro tempo não foi bom e algum outro tempo foi bom também e, assim, sucessivamente.

E porque os tempos são bons e nos fazem bem?

Porque nos fizeram bem e nos trataram bem, nos enriqueceram de pedaços de bem e até nos trouxeram prazeres e realizações.

E o que ocorre se o tempo não passa, então o que é que passa dentro da gente?

-Nada, na verdade nada passa.

Nem os pedaços de bom nem os pedaços de ruim que vive na gente.

Se passasse, nós é que já teríamos passado e portanto nem estaríamos por aqui.

Tudo fica dentro da gente como ficam os pedaços de boi dentro do boi. E, não é fácil acessá-los, principalmente, quando não queremos acessá-los, porque percebemos que foi desagradável e identificou na gente tudo que tem de ruim dentro da forma da gente e faz parte da identidade da gente.

Às vezes, a gente quer acabar com o nosso fígado, ou com o nosso coração, como fazemos com os pedaços de boi, mas aí, o boi já não terá identidade.

Também, enquanto a gente é gente, não conseguimos acabar com os pedaços da gente, porque podemos perder essa mesma identidade.

Nossa identidade é a nossa história construída em pedacinhos, passando pelo tempo. A história passando pelo tempo e não os pedacinhos passando.

Eu posso sempre continuar passando e construindo outros pedaços de boi e sentindo a construção que se ergue dentro de mim, mas não consigo arrancar de dentro de mim todo pedaço de boi que foi nascido ali e principalmente, se me fez muito bem.

Também não conseguimos arrancar o que nos fez muito mal.

O que fazemos de bom ou ruim nessa construção da história que vai passando pelo tempo, faz parte da vida da gente e da qual chamamos de passado.

Este não se apaga porque é como o coração do boi que vive lá dentro, enquanto o boi é boi.

O que podemos fazer é construir um presente que torne os nossos próximos passados melhor do que aqueles.

O difícil é quando o passado que a gente quer foi muito bom e precisamos dele novamente porque, em sendo único e especial, identificou-nos com a nossa verdadeira natureza.

Revelou-nos a nós mesmos.

A única solução é a esperança de continuar passando por outros tempos, tão bons hoje quanto os que já fomos capazes de construir.

A mão que ousar apertar a nossa precisa saber conduzir e representar a magia de nos envolver completamente, sem arrancar pedaços.

Servindo para dois , há de servir para todos.

Piloto
Enviado por Piloto em 01/06/2011
Código do texto: T3007425