A morte da Velha Margareth - parte final
-Durante muito tempo eu estudei o medo nas pessoas, a reação delas a esse
sentimento que afeta a todos os seres que vivem nesse mundo. Estudei o medo
principalmente em mim mesmo. O medo que gera a violência. A violência que
gera a miséria. Vi a face malvada que o medo tem, senti a forma melancólica
com a qual ele esmagou minhas forças, ouvi seus sussurros de desânimo
ecoarem em meus ouvidos, percebi sua maneira ora lenta ora veloz de me
atingir sem piedade, sem esperar com que eu me defendesse, me preparasse
para as suas investidas. Então, usei esse medo contra as pessoas que
causavam o mau. Usei esse medo para fazer o bem, fazer o que é certo.
O delegado levantou-se da cadeira.
-Você foi um justiceiro astuto, eu tenho que admitir, mas eu sei muito bem
que havia alguém por trás de você, dando as ordens, comandando uma grande
quadrilha de malucos que pensavam que podiam fazer justiça com as próprias
mãos. Eu quero nomes, e, principalmente, toda a informação da sua chefa, a
tal velha Margareth.
Augusto olhou serenamente para o delegado.
-Tudo que eu sabia eu já contei.
-Mas você não nos contou quase nada, ora bolas - vociferou o delegado,
sabendo que não tinha acusações suficientes para manter Augusto preso - Eu
quero o endereço, o nome completo, RG, CPF, data de nascimento, vinho
preferido, e esporte que ela pratica, se é que essa velha idiota consegue
levantar-se da cama.
Os punhos de Augusto se fecharam e o delegado percebeu que não seria
conveniente para a sua própria saúde ofender a mulher novamente.
-Conte-me como a conheceu?
Augusto apoiou-se na mesa. Suspirou profundamente.
-Conte-me essa história que deve ser magnífica, detalhadamente.
-Eu tinha vinte e dois anos. Morava em uma pequena comunidade no sul do
Ceará. Eu tinha uma esposa e três filhos. Mas a vida era desgraçada demais,
difícil demais. Um dia resolvi viajar até São Paulo para ganhar dinheiro,
fazer fortuna e mudar de vida. Mas eu não podia levar minha família comigo,
eu não podia levá-los para uma viagem no escuro. Deixei minha mulher e meus
filhos com a minha sogra, pelo menos eles teriam um teto, teriam o que
comer. Fui embora com a promessa de voltar.
-Que espécie de homem é você que abandona a família desse jeito?
-Eu não chamaria de abandono. Passei fome na estrada, lavei muito chão em
troca de um pouco de farinha e feijão.
O delegado caminhou impaciente pela sala de interrogatório.
-Mas eu não quero ouvir sua história triste, homem de Deus. Conte-me como a
conheceu, a Margareth, essa mulher terrível.
Augusto sorriu com desprezo.
-Depois de cinco anos de luta, arranjei um emprego numa empreiteira que me
deu alguma estabilidade. Coisa suficiente para pegar minha família para
morar comigo. Voltei, e quando cheguei encontrei minha mulher morando com
outro homem, chamava-se Diego.
-Típico.
-Meus filhos o chamavam de pai. Foi uma dor muito grande que senti. No mesmo
dia, cravei uma faca de cortar (seria melhor botar facão ou foice) cana no
peito do infeliz.
O delegado balançou a cabeça, aquele traste era assassino por natureza.
-Dois dias depois, recebi a visita de quatro capangas que vinham a mando de
uma mulher chamada Margareth. Eles me pegaram e me deram a maior surra que
já levei na vida. Então me passaram uma mensagem. O homem que eu matei
chamava-se Diego e era filho da senhora Margareth.
-Ela te deixou vivo?
-Com uma seguinte condição. Ela me fez uma proposta. Eu jamais poderia rever
meus filhos e minha esposa novamente. Esta seria minha punição. Apenas
poderia falar com eles ao telefone e poucas vezes por ano, e teria que
trabalhar para ela combatendo injustiças como a que ocorreu com Diego.
-Que mulher insensível.
-Ela sofreu - disse Augusto levantando sensivelmente o tom de voz - Ela
mesma dizia que não havia dor maior que perder um filho, mas que me matar
não adiantaria de nada, seriam apenas duas vidas ao invés de uma.
Um homem de paletó e gravata entrou na sala de interrogatório. Sussurrou
algo no ouvido do delegado e lhe entregou um envelope. Ele abriu, agradeceu
e pediu que o homem se retirasse.
-Aqui está toda a documentação que conseguimos reunir sobre você e sua
chefa. É muito pouco. Temos uma relação de vítimas também, quero
detalhadamente que você me descreva os procedimentos de como as atacava.
Augusto contou, sem a riqueza de detalhes exigida, como usava do dinheiro,
do poder e da astúcia para realizar suas missões. Subornou muitos
funcionários para derrubar um rico e corrupto empresário, foi cruel e rápido
para aprisionar uma mãe que abandonara sua filha, como se disfarçou de
pedófilo para entrar numa organização de prostituição, e, dentre todos, o
mais impressionante, como assassinou três senadores com o consentimento do
presidente da república.
-Mentira!
-Não estou pedindo para você acreditar.
-Esse crime da morte dos senadores é um mistério há quase três décadas.
-Vai chamar a polícia federal?
-E perder a oportunidade de solucionar esse caso? Nunca. Ele é meu. Quero
ver a velha Margareth, agora.
-Mas.
-Ela morreu, eu sei, faz duas semanas, quero ver seu corpo e fazer exames de
DNA. E, adivinhe? - ele sorriu - Já temos um mandato.
Augusto, alguns policiais e o delegado foram até o cemitério.
-Abram
Dois coveiros começaram a abrir o túmulo. O delegado olhava a tudo com um
sádico prazer nos olhos. Tornaria-se famoso por desvendar um mistério na
história do país.
Havia sido a primeira missão de Augusto. Matar os três senadores que
mantinham empresas laranja que lavavam dinheiro sujo do tráfico de drogas.
Uma das primeiras quadrilhas do país.
-Não, não, não - gritou o delegado.
Os coveiros se entreolharam sem saber o que dizer. Os policiais recuaram
alguns passos, e até Augusto parecia incrédulo.
O túmulo estava vazio.
-Essa maldita, onde ela está, abram cada túmulo desse lugar. Você, maldito,
irá me dizer quem ela é.
-Acho que não - disse augusto - Eu nunca a vi.
-O que?
-Eu lhe disse que ela me enviou um recado através dos seus capangas. Eu não
conheço seu rosto. Perdi o contato com ela faz exatamente duas semanas.
O delegado pegou Augusto pelo pescoço.
-Maldito seja.
Vários homens da polícia federal chegaram ao local. Renderam o delegado e os
coveiros. Um homem de óculos escuros se aproximou.
-O senhor está detido, delegado, por atitudes indisciplinares, queira nos
acompanhar e prestar depoimento. E você - virou-se para augusto - está
liberado.
-Não, ele é um criminoso. Escute-me, soltem-me.
O delegado foi levado à força. Os federais desapareceram na mesma velocidade
que surgiram.
Augusto ficou sozinho. Foi até o orelhão mais próximo e deu um telefonema.
-Ora, ora, creio que a cavalaria chegou a tempo.
-Sim, minha senhora, bem a tempo.
Margareth riu com satisfação.
-O presidente enviou seu pedido de desculpas, Augusto, e prometeu que tais
infortúnios não voltarão a acontecer.
-Assim espero.
-Contou a eles a verdade?
-Não minha senhora, eu inventei uma história sobre seu filho roubar minha
esposa, capangas e viagens a São Paulo.
Margareth riu novamente.
-Você? Casado?
-Foi a única coisa que me passou pela cabeça.
-Menos mal, não queria quer soubessem que eu fui à mãe do senador Diego, um
dos precursores do tráfico no Brasil. A dor de tê-lo perdido já é grande
demais, não quero essa vergonha me acompanhando.
Augusto abaixou a cabeça. Jamais havia se desculpado por ter matado Diego.
Na época, Augusto recebeu as ordens de matar três senadores corruptos a
mando de Margareth. Mas nem ela, nem Augusto sabiam que um deles era Diego.
-Seu FGTS, Férias, e toda a burocracia já foram depositados, Augusto. Faça
bom proveito da sua aposentadoria.
-Eu lhe agradeço, minha senhora. E quanto à senhora, o que fará?
Margareth suspirou profundamente.
-Passarei mais algumas semanas com meus netos e minhas filhas, curtindo as
praias aqui da Austrália, apesar dos tubarões.
-E depois?
-Voltarei para o Ceará, Augusto. Retomarei uma antiga paixão: as aulas de
geografia. Irei lecionar em escolas carentes.
Margareth sorriu.
-Afinal de contas, acho que já está na hora de começar a fazer o bem com as
minhas próprias mãos.
FIM