A cobra que mordeu o belo e o FMI

Médico sério, competente, respeitado e admirado pela dedicação aos pobres, José Ivo Cavalcanti – nosso tio Zezé – marcou tanto a cidade de Natal nos idos de quarenta e cinqüenta que virou nome de rua e até hoje seu túmulo é visitado por pessoas simples que depositam ex-votos por conta de curas milagrosas supostamente alcançadas. Nós o tínhamos como um ser superior, capaz de em poucos minutos de conversa tirar a vovó Neném da pior crise de não-sei-o-quê que a deixava prostrada, rezando alto e desesperada por causa da morte iminente.

Até que um dia, num sábado de carnaval, eis que ele surge, para surpresa geral, porta-estandarte de uma improvisada troça intitulada A cobra que mordeu o belo. O estandarte, uma cobra coral posta no formol, contida num frasco de vidro transparente dependurado numa vara. Tinha até hino, uma espécie de marchinha que falava qualquer coisa de um belo homem despertado para os prazeres da vida por uma dama encantadora e traiçoeira. Era a cobra que havia mordido o belo.

Passada a fuzarca, tio Zezé retornou ao seu terno de linho e à seriedade quase solene com que atendia seus pacientes, inclusive os sobrinhos menores aos quais aplicava como terapia um jejum severo de sete dias, quebrado apenas por uma canja de carne de sol, torradas e chá.

Aos nossos olhos de criança, uma frustração. Bem que gostaríamos de manter a imagem do folião, muito mais simpática do que a do médico.

Mutatis mutandis, é o caso atual do governo Lula em relação ao FMI. O acordo não foi renovado, ótimo. Uma decisão rica em significados. E em possibilidades. Afinal, livramo-nos de contratos que nos impediam de agir livremente conforme nossos próprios interesses. Já não somos prisioneiros de restrições ao uso de nossas reservas monetárias, nem devedores de taxas relativas à disponibilidade de recursos stand by. Mas falta o complemento, para que as coisas ganhem concretude e repercutam sobre a vida de cada um de nós.

Pois se não há mais a tutela do Fundo, mas permanece a orientação macroeconômica fiscalista, inibidora das atividades produtivas, tudo fica como estava. Basta ver o novo contingenciamento do Orçamento, que atingiu setores importantes da ação governamental – como segurança e saneamento – prenúncio, infelizmente, segundo alguns analistas, de um endurecimento maior ainda nas metas inflacionária e do superávit primário, com o fito de preservar a credibilidade junto a investidores estrangeiros. Do que resultaria enorme frustração - que nem a volta do tio Zezé à sua rotina depois do carnaval.

Luciano Siqueira
Enviado por Luciano Siqueira em 01/07/2005
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