Respeitável público, Bob Lester

(mais crônicas em www.cronicasdobeto.blogspot.com)

Numa lista das pessoas que menos podem “se achar” na vida eu seguro a lanterna. Para ser sincero, ninguém deveria ter essa atitude, essa empáfia, mas o mundo é como é. E apesar de eu não poder “me achar” nenhum pouco (e quando digo isso é nenhum pouco mesmo), às vezes cometo deslizes de soberba e tripudio – sem querer, querendo, já dizia o Chaves – aqueles que nada me fizeram pura e simplesmente por julgá-los estranhos, bizarros, curiosos ou coisa que o valha. Mesmo que o faça internamente, sem expor o pensamento aos olhos em volta, por óbvia covardia e preservação de uma imagem de areia. Mas não dizem por aí que a pior mentira é aquela que contamos para nós mesmos?

Sábado à tarde eu passeava pela Praia do Arpoador, no Rio de Janeiro. Dia de um sol que ia e voltava - só de farra, gente bronzeada, ondas... muitas ondas (inclusive, estavam desmontando os palanques do WCT, que havia acontecido durante toda a semana) e aquele ventinho bossa nova que não pára de assoviar cantando a Cidade Maravilhosa. Passeávamos eu e um amigo, despreocupados, quando, em frente a um hotel, cujas mesas do restaurante se esparramavam em turistas pelo calçadão, vimos um senhor fazendo estripulias. Era um artista de rua.

Magro, cabelos brancos nas laterais e faltosos no centro do campo, de calça social, camisa branca, gravata borboleta e chapéu. Aparentava a idade de ter ido à final da Copa de 1950 no Maracanã... e já com a carteira de reservista no bolso. Idade sim, mas a vitalidade era de quem poderia entrar em campo no lugar do Felipe Melo na última Copa (algo me diz que sairíamos no lucro). Quando passamos por ele, pelo visto, tinha acabado há pouco tempo uma apresentação. Estava com uma calcinha vermelha rendada por sobre a calça e tentava com certa dificuldade tirá-la. Dei risada e comentei “é cada tipo!”

O senhor havia aberto um lençol no chão, defronte ao restaurante, e sobre ele colocara alguns objetos que usava em suas apresentações – uma peruca, um pandeiro meia-lua, castanholas e por aí afora. Porém, não vi a dita apresentação. Só o vi se despendido e agradecendo ao público, que mal lhe dava atenção. Uma cena deprimente, com um personagem até engraçadinho, mas sem brilho e sem noção da própria imagem, julguei – num tremendo mau sentido, admito. Foram pensamentos breves, internos e que, no fundo, não fazem mal a ninguém, só a mim mesmo. Fui embora e me esqueci do velhinho durante o resto do dia.

À noite vou ao notebook, abro o site do Jornal O Globo para ver as notícias e com quem dou na capa? Respeitável público, o tiozinho do Arpoador. Então pensei, “mas que raios...!” E lá fui eu descobrir quem era o velhinho. Eis a manchete do jornal:

Aos 98 anos, o show de Bob Lester não pode parar

“Tomou?!”, diria a humorista. Quase me dei um tapa na cara – e devia! Afinal, eu ri de um senhor de 98 anos que – dane-se o que fazia, ou quem seria... o que importa a minha opinião? – tocava sua vida plenamente, trabalhando e feliz. E antes fosse só isso. Abri a matéria:

“Sou o Bob Lester. Cantei com Carmen Miranda, no Cassino da Urca e nos Estados Unidos. Também fui amigo de Frank Sinatra, Bob Hope e Doris Day. Muito prazer!”

Senti-me tão estúpido e pequeno que precisei levantar e tomar um copo d’água antes de continuar. Imagino o quanto o Sr. Bob Lester riria de mim agora. Volto às linhas:

O senhorzinho, então, guia a repórter até a saída do hotel onde mora para dar seguimento à entrevista. “Enquanto desce as escadas que levam à recepção, Bob dança e dá gritinhos imitando Michael Jackson”, conta a jornalista. E o texto segue: “O cantor, dançarino e sapateador, que viveu áureos tempos nas décadas de 30 e 40, está pronto para mais um show. Ele recebe os cumprimentos dos funcionários do hotel, onde mora há quatro anos, desde que saiu da casa de uma irmã em Realengo."

"– Ela (a irmã) queria me levar para uma igreja evangélica" – diz o artista.

Meu herói! Eu não sabia até aquele dia, mas Bob Lester é o meu herói. Aos 94 anos, uma fase, creio, em que neguinho se agarra a todos os santos na esperança da vida após a morte, o cara largou a casa da irmã para fugir da igreja e não ser convertido... MEU HERÓI!

Detalhe: sabe quem paga as despesas do hotel onde ele vive? O rei Roberto Carlos. E eu lá, rindo do velhinho “sem noção”.

Bob Lester nasceu Edgar Almeida Negrão de Lima. É gaúcho, de Santa Maria, e foi para o Rio em 1932. Começou a carreira artística depois de participar de um concurso no programa de calouros de Ary Barroso. Com o sucesso, foi convidado para sapatear e cantar no Cassino da Urca, onde teria conhecido Carmen Miranda, Grande Otelo e Oscarito (sinto-me cada vez mais estúpido). No fim dos anos 30, fascinado por aventuras - já casado e pai de duas filhas - resolveu fazer carreira no exterior. Viajou sozinho e fez apresentações em cassinos de países da Europa. Na mesma época, Bob diz ter atuado como dançarino em shows de Frank Sinatra, Bob Hope e Doris Day.

"– Foi Bob Hope quem me sugeriu o pseudônimo de Bob Lester" – finaliza o tiozinho do Arpoador que, em poucos segundos, enquanto cambaleante tirava uma calcinha vermelha que estava por sobre a calça social, me deu uma das maiores lições que já tomei na vida.