Pequenos serviços
Pequenos serviços
Posso varrer duas folhas. Se me derem uma vassourinha, varro uma, depois a outra. Posso esvaziar cinzeiros que não estejam muito entulhados e, admito, não muitas vezes. Não no mesmo dia. Prefiro esvaziá-los de noite e varrer as folhas pela manhã.
Posso recortar tiras de papel na forma de quadrados mais ou menos iguais, escrever uma letra do alfabeto em cada quadrado e com isso formar uma palavra. Qualquer palavra, desde que não seja muito extensa. Posso, se estiver à mão, consultar um dicionário.
Com relativa destreza descasco peras e lavo romãs, além de devolver a vassoura ao seu local de origem.
Depois das folhas varridas seria possível, guiado por bons ventos, dirigir-me à banca de jornal e escolher um exemplar, mas tudo dependeria das manchetes e assim corre-se o risco de deixar incompleta a execução dessa tarefa.
Posso olhar as coisas sem compreendê-las assim como posso compreendê-las sem sequer olhar para elas. Curioso. Não saberia como anunciar esse préstimo.
Posso palitar os dentes, os meus e não os de outra pessoa, embora duvide que tal ação seja encarada como à serventia de terceiros.
Para compensar a lacuna acima me vejo dando laços em cadarços, colocando água em formas de gelo, dobrando guardanapos de linho, enchendo pneus de bicicleta, soprando um apito de plástico, empilhando livros de bolso, colocando chaves num chaveiro e inventando pequenas listas de pequenos serviços.
Pessoas de indiscutível competência criticariam a futilidade dessa ação. Sei de uma que me chamaria de tolo. Isso teria pouca relevância e não me impediria de elaborar as listas para então anunciá-las. Quem sabe num mural de igreja. Ou de agremiação escolar. Num quadro de avisos de condomínio, até mesmo em supermercados são permitidos anúncios de pequenas tarefas.
Curiosos de toda sorte se deparariam com os cartazetes e ficariam ruminando sobre as possibilidades. Um deles, timidamente, bateria à minha porta numa manhã qualquer e me perguntaria se era possível fazer citações.
- Diariamente – responderia eu, sem expressão no olhar.
O futuro cliente, cuidando de escolher as idéias antes das palavras e por fim soltando-as como que num desabafo, diria precisar de uma citação que resumisse seu estado de âmago, indecifrável naquele momento, e que por ventura pudesse servir de ajuda a norteá-lo até o fim de seus dias.
Ainda sem expressão no olhar eu lhe repetiria algo que fora cunhado há 2.500 anos, ou pelos gregos, ou pelos romanos. Provavelmente pelos gregos.
- “O fim é determinado pelo começo”.
(Imagem: autoria desconhecida)