A barbearia, o acidente, os mortos...
A barbearia ficava no final da longa rua. Uma barbearia encerra algo corriqueiro como as longas viagens. Em ambos os casos abrem-se as portas mais ocultas da alma. Um barbeiro está habituado a audição de longas histórias como um bom companheiro de viagem.
Um senhor dos seus setenta anos de idade molhado da chuva entrou rápido no salão e acabei lhe cedendo a vez. Minha delicadeza não passava de oportuna circunstância. Lá fora desabava a mais estrepitosa chuva de granizo em meio a escuridão artifical do dia. Observei o relógio, 11h30min. Estava perdida a viagem de regresso até a capital. Da porta da barbearia era possível avistar ainda algumas pessoas correndo pela praça principal tentando abrigo.
A narrativa daquele senhor aos poucos começou a se tornar obscura quanto o dia. Principiou recordando o acidente na estrada. A pavorosa morte do casal que viajava com destino a Montevidéu. “O motorista perdeu parte da cabeça e a esposa teve o pescoço decepado pelo paralama do automóvel”. O barbeiro lhe corria a navalha pelo rosto imóvel de granito enquanto prosseguia a história. Tomei como interessante à narração apenas porque senti o quanto desviava o assunto para outro recanto. Lugar onde a morbidez cederia espaço aos novos fatos que se erguiam em meio ao sangue ainda vívido em sua memória. Desses respingos havia qualquer relutância aprisionada sobre a forma de obscuro heroísmo. Mas que sentido heróico pode haver diante do fato horripilantemente consumado?
Um homem rústico está sempre disposto a elevar seu mundo ao ponto mais alto da sua vaidade. Vaidade ferida pela realidade do abandono em que vive. Continuou: “fui o primeiro a encontrar os corpos dentro do carro destroçado dentro das minhas terras. Chegando ao local do acidente recolhi a maleta de couro contendo dez mil dólares. Lancei mão do dinheiro quando... Houve uma breve pausa quando um pequeno acidente do barbeiro lhe cortou o rosto com a navalha. Como se nada tivee ocorrido ele continuou. “Aos poucos começou a surgir na estrada um ônibus de linha desembarcando muitos curiosos”. Um deles se disse sargento da polícia à paisana. Perguntou se não havia encontrado nada. Disse que havia encontrado o dinheiro. Ele quis então tomar o valor alegando que era autoridade. “Repliquei: autoridade eu também sou”. Ele insistiu ameaçando com voz de prisão. “Podia levar um velho para cadeia, mas antes tinha que sair primeiro de dentro das minhas terras”. Por sorte o carro da funerária do Euclides, velho amigo, havia sido avisado. Homem honesto. Sempre pronto para cumprir com seu destino de enterrar os homens... Levamos os mortos para o necrotério. Como por uma espécie de pudor fechamos primeiro o caixão da mulher. Depois começamos a contar o dinheiro em cima da barriga do morto.