CORES DE MINAS - CRÔNICAS HISTÓRICAS
É apenas um papel. Frágil como todos os outros, que pode dissolver-se com a umidade ou pode desfazer-se com o tempo. Para mim, a glória, a vitória, a conquista. Com ele sou professor de pintura e arquitetura. É o bastante para mim. Agora é tentar abrir minha escola. É a certeza de que meu trabalho tem o reconhecimento das pessoas. Ah as pessoas! São tantas nestas minas e de tantas cores, que são a minha inspiração. Meus trabalhos são essa gente, para essa gente tão batalhadora e que luta pela vida digna. São as cores destas minas. Meus trabalhos retratam a realidade dessa terra. Gosto das cores. Uso e abuso delas, sem muita moderação. Gosto principalmente do azul, que me lembra o céu desta terra e os horizontes infinitos, que permitem vagar a imaginação pela imensidão e do vermelho, forte, vivo, vibrante, que me faz recordar o sangue dos escravos, que correm junto aos veios de ouro, num paradoxo de riqueza e horror tão próximos e tão distantes. Andei por lugares vários, observei inúmeros panoramas e elaborei incontáveis encarnações para santos que por este mundo passaram. Alguns cenários reais, outros imaginários, de acordo com o rosto do santo e suas expressões.
O sol hoje está forte em Vila Rica. Faz um tremendo calor nesta cidade, o que não é muito comum entre estas montanhas. Preciso levar a mão à testa para observar melhor a capela de São Francisco do meu amigo Antônio. Por detrás das torres que parecem dançar por entre as nuvens, posso observar o Itacolomy, imponente, como ainda a marcar o território das grandes minas de ouro. Passos firmes em direção à igreja. Entro por sua portada, mas paro um pouco diante da escultura do santo padroeiro, tão perfeita que parece até movimentar-se.
Aqui dentro, assento-me mais à vontade e ergo os olhos para o alto, para a pintura do forro dessa igreja. É a mais linda de minhas pinturas, uma perspectiva de abóbada de tirar o fôlego. Parece que olho para o céu, de tão lindo ficou esse azul sustentado pelas colunas da igreja, com seus santos doutores. E não é um céu qualquer, é um céu em festa, com a coroação de Maria, Rainha dos Anjos. Causei o falatório de sempre. Toda a alta sociedade falou de minhas mulatas e meus anjos negrinhos. Nessa Maria eu exagerei mesmo um pouco. Ela ficou completamente brasileira, o rosto dessa gente que anda pelas ruas das nossas cidades. Ela traz um sorriso vitorioso, tal como espero que um dia assim o seja. No meio desse céu ela é coroada, imponente, rodeada por meus anjos. Eles são esses meninos que por aí andam brincando, subindo e descendo essas ladeiras. Valeu a pena ficar parado nestas esquinas, observando rostinhos, ouvindo conversas, notando as brincadeiras de cada um. Eu os coloquei rodeando a Virgem. É o paraíso vasto e luminoso que vejo na vida das pessoas com quem convivo e a quem amo. A inocência desses coros de anjos são os sons dos meninos e meninas que sofrem nas mãos desses donos de escravos. Maria sorri feliz para eles nesta pintura fenomenal. Ela tem o rosto das mucamas, das amas de leite, das servidoras dos lares dos mineradores e fazendeiros. Nem sei como não me fizeram apagar ou substituir o desenho. Ela é a escrava do Senhor, como disse no evangelho.
Ouço baixinho uma Ave Maria, que vem da voz rouca de uma senhora ajoelhada em contrição e em prece próximo ao altar central. Ela também deve contemplar a Virgem morena dos Anjos, e deve rezar pelo pintor. Acolho sua oração e a oração de tantos que aqui vieram e virão rezar contemplando meu painel. Dentro dessa igreja sinto uma paz suave, parecendo que ouço uma melodia angelical. Fecho os olhos e contemplo mentalmente minha obra. Sinto os anjos com as flautas, o violino, as trompas e harpas suavemente tocadas pelos anjinhos mestiços. Ouço o sorriso de Nossa Senhora, e sinto o céu de minha pintura tomar forma de festa e júbilo. Ouço o sorriso de Antônio Francisco quando executava essa obra e parávamos horas a fio conversando sobre nossos trabalhos. A pintura eleva-nos ao céu. Por isso gosto de pinturas com motivos bíblicos e religiosos. Eles me completam por dentro e são como a minha esposa. Sou um soldado da arte. Aprendi como alferes a disciplina e como artista a total rebeldia contida nos pincéis e nas cores.
Andei por tantos lugares e retratei as cores dessas minas, dessas reais estradas, desses caminhos movimentados de escravos e de liteiras coloridas que carregam senhores e senhoras apaixonados pelas cores da colônia. Meus pincéis são pedaços desta terra e carregam neles as aspirações das gentes. Nesta igreja onde o que se ouve é apenas o som da piedosa senhora que parece ainda ter uma longa oração pela frente, eu Manuel da Costa Ataíde respiro a melodia das visões que provoquei, das discussões que atentei e das reflexões que se tornaram inevitáveis dentro das almas pensantes, ao perceberem que Deus, seus santos e anjos podem ter a cor dessa gente que tanto maltratam. Recordo cada pincelada, segurando firme meu “diploma”, cada viagem e cada igreja que por mim ganhou mais vida, com as cores e formas que consigo oferecer como uma oração perpétua a Deus. Eu irei desta vida, espero descansar em paz na minha querida Vila do Carmo , que amo e onde deixe minhas primeiras marcas, mas minha obra ficará para a posteridade.
Saio da Igreja. Revejo a rua, a praça e viro-me para trás, contemplando as montanhas dessa cidade. Continuo meu caminho e volto ainda hoje para o Carmo. Tenho ainda muitas cores a retratar, muitas igrejas para ornamentar e preciso de um descanso. Desço a ladeira de Antônio Dias, olhando sempre para trás. Nunca gosto de sair daqui, pois parece que um pedaço de mim fica neste lugar. Vou observando as torres dançantes de São Francisco e vou entoando a melodia dos anjos, que me seguem, me acompanham pelos caminhos gerais. Perde-se de vista e a direção da frente me mostra as montanhas que me levam à minha cidade. Na praça do pelourinho, ante as duas igrejas e a Câmara, entendo minha missão: colorir o mundo, colorir as dores para expulsar a visão branco e preto, sem perspectiva, sem vida, sem graça, transformando-as em céu, onde meus mulatos são personagens principais.