É Quinta-feira: Mate!

Poderia jurar que tinha saído do trabalho em busca de um pouco de distração, e não de mais desaforo e espera. Bem, estou exagerando... Mas é que eu não esperava encontrar o Mate cheio, sem lugar pra sentar ou encostar. O pessoal aqui parece não ter porra de pressa nenhuma pra mastigar: estão ocupados demais falando da Verdurada, conversando sobre a faculdade e sobre seus amores e desamores. Sentei-me num banco de praça de estilo antigão, pintado de branco, defronte a uma loja de quinquilharias (que não posso pagar), liguei o MP3 e tirei o livro da mochila. Li só dois parágrafos e tornei a fechá-lo: é clichê demais ficar lendo aqui. Claro, meu livro definitivamente foge da veia filosófica européia e dos beats norte-americanos que muito se vê por aqui, mas, enfim. Também desliguei o MP3... A bateria está pela metade e preciso poupá-la agora para posteriormente poupar meus ouvidos da gentinha barulhenta do telemarketing que costuma pegar o ônibus que pretendo utilizar pra voltar pra casa. Depois de uns dez minutos de espera - andando de um lado pro outro, fingindo impaciência com o atraso de alguma garota, pra não ficar tão feio na fita - dois rapazes cairam fora e puxei um dos bancos: o último, quase em frente ao caixa. O banco do meu lado esquerdo está vago. Ficou vago durante algum tempo, mesmo com a sombra de alguém atrás de mim, impaciente da mesma forma que eu estava até poucos minutos atrás. Fiz meu pedido e olhei pra trás, à minha esquerda, e o que vi foi: nariz comprido, adunco, e bonito; lábios grossos e batom vermelho combinando com um (blazer? jaqueta? sei lá!) também vermelho. Olhos de um verde escuro: o mesmo verde que encontro nos beirais do terraço do prédio da empresa que trabalho; de uns matinhos que crescem lá. Mentalmente eu dei de ombros e voltei a minha atenção aos imãs de geladeira. Sempre fico olhando os imãs dessa geladeira. Percebo que o MP3 continua ligado. Coloco os fones. Ouço a voz da garota atrás de mim, fazendo o pedido. A tiazinha conversa algo com ela. Meu Mate e minha torta chegam. Ela finalmente resolve sentar no banco que está vago ao meu lado. Depois estendeu um cartão de crédito, que é uma forma de pagamento que não é aceita. Primeiro estranhei o fato: ela, com aquela cara de quem tem dinheiro, pagando uma réles xícara de café no crédito? Depois me senti tentado a me oferecer como fiador de seu café em troca uma aprofundada conversa sobre a reversão da entropia do universo mas sacudi a cabeça e voltei à realidade: eu definitivamente não era seu pai para ficar bancando os desfrutes da vida muito menos tenho tino pra manter qualquer tipo de conversa com alguém que não conheço. Voltei aos imãs. Ela também olhava-os com atenção - pude notar pelo canto do olho. Olhamos um pro outro ao mesmo tempo. Não há esmalte em suas unhas e sua saia é preta. Usa meia-calça de lã, preta, e Melissa cinza chumbo e uma bolsa grande e preta pende em seu ombro direito. Uma wannabe de Amélie Poulain? Essas meninas daqui andam todas iguais... Mas o inegável é que: mesmo todas iguais, são maravilhosamente estilosas, e, mesmo parecendo uma sucessão de clones para um observador mais atento às roupas, cada uma tem lá a sua atraente peculiaridade - essas geladeiras em que eu adoraria ser o imã! Ela me olhou de novo. Dei-me o luxo de fazer soar blasé. Não é só por que está estampada na ponta de seu nariz que sua concepção fora perpetrada em algum quartinho em Nápoles ou em Roma que eu vou ceder aos seus encantos assim, tão facilmente. Chegou uma mensagem no meu celular: "Você tá tomando mate com cannabis? Que delírio é esse?". Poético!

- Esperando alguém?

- Sim.

- Ah.

Ela perguntando se estou esperando alguém. Hã?

- Quero dizer - retomei o papismo furado - não ALGUÉM, mas ALGO.

- Entendo...

- Ah.

Imãs. De geladeira. Um do Joy Division atraiu a minha atenção: primeira vez que o vejo! Ian está bem na foto, como sempre.

No meu ouvido direito a música: The right time for a bitter goodbye.

- Que ALGO é esse?

- A morte, talvez.

- Credo!

- Não, brincadeira - olhei pros meus pés - E você, esperando ALGUÉM ou ALGO?

Levou a xícara à boca. Deu uma bicada.

- Não...

- E então?

- Então o quê?

- Nada - cocei a nuca - Alguém que vem tomar um café não precisa estar necessariamente esperando ALGUÉM ou ALGO, não é?

- É.

Finalizou o conteúdo e levantou-se.

- Tchau.

- Tchau.

- A gente se vê.

- Duvido muito...

- Por quê?

- Por que não tem por quê.

- Por que não?

- Porque não nos conhecemos.

E aí?

- Deixa que o acaso seja nosso amigo - falou - tchau, prazer, Estranho!

- Aham.

Imãs.

A vi entrando no Sebo que fica locado na mesma galeria em que o Mate é instalado. Finalizei meu copo e paguei a conta. Fui até lá. Só não sabia se ela ainda estava lá, pois na espera do troco acabei me distraindo. Decidi perguntar sobre um livro que eu sei que nunca vou encontrar no Brasil e que, inclusive, já havia perguntado sobre nesse mesmo Sebo duas semanas antes.

- O Palavras Cínicas eu AINDA não tenho, vou ficar devendo...

- Belê, brigado...

Fiquei parado na calçada, fingindo a desolação e angústia característica de quem está esperando por algo que muito esperou e que já está sendo consumido pela certeza de que continuará eternamente esperando - aquela caveira cheia de teias de aranha arrimada em cima do baú do tesouro.

Ela aparece com um livro em mãos. Mexe na bolsa: será que aceita crédito no Sebo?

Surge, subindo a Augusta, uma dessas coisinhas que saem da academia suadinhas com calça suplex. Me distraí, vendo a bundinha malhada e a mancha de suor da calcinha, subindo a rua, e, quando dei por mim, Estranha ia no sentido oposto. E agora, José?

Dei de ombros e fui pro ponto de ônibus. O misterioso ALGO que eu queria, já descobri: inspiração. Estou no ônibus e agora eu me amaldiçôo por não ter papel nem caneta. Não quero escrever no celular. Sinto-me mal humorado demais por causa da bexiga cheia. O ônibus chega no ponto final e eu salto. O outro ônibus está parado no ponto, relativamente vazio e pronto pra sair. Ele nunca está parado no ponto, relativamente vazio, e pronto pra sair. Opto por aliviar a bexiga e vou até o banheiro. Ah, o banheiro de um terminal de ônibus do centro da mais cosmopolita e injusta das capitais do País! Coloco pra fora, como há de ser, e fico olhando os "cometas" - e me divirto com essa repentina analogia. Imagina que você deu aquela aliviada nas tripas e não há papel. E agora? A rapazeada passa a ponta do dedo lá e passa na parede; e o risco de merda que é formado parece um cometa. Sacudi, como há de ser, e fiz alguns pedidos aos cometas. Saí do banheiro. Tenho três opções: 1) Esperar outro ônibus da linha que eu havia perdido; 2) Pegar a outra linha, que significa maior rapidez pra chegar em casa, PORÉM, vai pegar bem o horário de saída do telemarketing e 3) Sair do terminal e pegar um que me deixará a 7 pontos de casa, sendo que eu acabarei tendo que pegar outro. Arrisco a segunda opção, vendo que há lugar pra ir sentado. Entrei e o cheiro de AXILA logo me nocauteia as narinas. Praguejo. Um indivíduo sentado no primeiro banco ouve Avril Lavigne no alto-falante do celular. Acho um lugar depois da articulação, ao lado de um rapaz de opção sexual duvidosa. Sento. A mocinha do banco da frente é maravilhosa. Mas tem uma voz insuportável e fala alto. Fala alto. Alto demais. O ônibus sai e depois de alguns pontos o fã da loirinha americana passa por baixo da catraca e vem com seu alto-falante ligado. A mocinha falando alto e ele senta no banco atrás de mim. Fechei o livro. Por três vezes, conto até 10 para não arranjar encrenca com o miserável. Inclusive a catinga advém dele. Poético, o quão amuleto da sorte do Azar eu sou! Ele desce onde o telemarketing sobe, mas não subiu ninguém. A mocinha falastrona levanta. Tem um puta corpo. Mas tal voz só serviria pra gemer - com uma almofada afundada em sua cara. Ela desce no ponto do shopping. Não obstante em me brindar com a bateria do MP3 descarregada, o destino resolveu amolecer o coração do motorista, que deixou meia dúzia de rapazes entrarem pela porta traseira. Senti-me numa excursão escolar! Toda a meia dúzia falava aos berros e ao mesmo tempo, havendo um uníssono AEEEEEEE vez ou outra. Ai, meus nervos! Desci do ônibus com a ciência de que não hesitaria um segundinho sequer se me fosse dada a benção de poder tirar a vida desses miseráveis isento de sofrer as devidas agruras da Lei. Como se não bastasse tudo, desci a rua de casa ao lado de uma fedorenta que, adivinha? CELULAR COM ALTO-FALANTE TOCANDO FUNK! Surpreendi-me soltando um "ESCROTA DO CARALHO" em voz alta. Em, casa, descubro que tenho um quarto tomando forma. Um quarto só meu, quero dizer. Mas noto que será um quarto sem janela. Entra minha vó em casa, perguntando do mais novo, que está dormindo com a boca escancarada no quartão da velha. Conversamos animadamente.

- Mas, vó, ela sabe que eu não suporto janela fechada quando está calor... como farei quando chegar o verão?

- Rafa, rapaz, eu falei pra ela! Você pode dormir com a porta aberta quando estiver sozinho, mas...

- É, vovó!

- ... Mas e quando você trazer a namorada? Não vai poder ficar com a porta aberta!

Fiquei pasmo e caí na gargalhada; engraçado a mãe da sua mãe ser menos careta do que sua mãe. Despedimo-nos com um abraço e com um "boa noite" e eu me senti melhor.

Abri a última Leffe - bendita seja! - e brindei ao Nada.

*

PS: A quem interessar possa: o "Mate", na verdade, chama-se SABOR MATE, e fica na Rua Augusta. O Google faz o resto por você! E esta propaganda é justificada: é bom DEMAIS e baratinho para os padrõe$ da região. Beijos.

26/05/2011 - 23h23m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 26/05/2011
Código do texto: T2995788
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