DO NORTE ESTRELA - CRONICAS HISTÓRICAS

Abro minha bolsa e revejo este bilhete, enviado há tantos anos pelo meu querido marido que se foi sem dizer adeus. Estes versos sempre me remetem ao dia terrível. Meu Deus! Parece que foi ontem. Quando fecho os olhos ainda vejo-o chegando, aflito, assustado, pálido, entrando em casa aos gritos. Olho para esses montes aqui do São Gonçalo do Sapucaí, deixo meu pensamento voltar a São João Del Rey, naquele dia em que vi minha vida ser destruída por completo. Não fosse minha fé em Deus hoje estaria realmente louca, como dizem por aí. Mas eu estou bem. Tudo foi pago, não há dívidas e não me arrependo de nada. Ainda tenho os olhos fixos no passado e não consigo dele me desvencilhar. Ando dia e noite a vagar por estas ruas. Minha vida tornou-se insalubre e sem motivos, penso apenas em minha princesa e no meu amado que se foi de mim, tirado como um criminoso que apenas queria mudar a vida desta colônia.

Ah que saudade da vida boa, quando eu desfilava pelas belas ruas de São João, entre casarões e inúmeras igrejas, vendo ao longe a Serra de São José e contemplando as torres que no inverno ficam cobertas pela névoa. Hoje a névoa cobre meus olhos noite e dia, e me impedem, não de ver as torres das igrejas, mas sim, de ver meu futuro que não existe, que apenas espera o fim. Era um espetáculo lindo, o badalar dos sinos daquela vila a comunicar todos os acontecimentos. Cada batida tinha uma comunicação diferente que só quem lá nasceu compreende. Por aquelas ruas muitas vezes eu causei inveja, mesmo sem querer, ostentando minhas jóias, meus caros vestidos e meus lindos filhos. Ifigênia, minha Princesa do Brasil sempre andava comigo. Sorria bondosa e meiga para todos, e sempre abaixava a cabeça numa reverência aos mais velhos. Ela que se foi tão cedo, ainda menina e eu nunca consegui esquece-la. Ah o tempo, como é cruel e a vida como nos prega peças cada dia mais traiçoeiras. Ainda bem que Alvarenga não viveu para ver a partida de nossa filha, colhida como a mais bela rosa de um jardim para enfeitar o altar do Senhor.

Meu corpo treme, como que perspassado por um calafrio terrível, quando me lembro do dia em que Alvarenga foi de mim arrancado e deu aquele último olhar, frígido, clemente, como a pedir socorro por sua vida e como a dizer que voltaria em breve, que eu fosse forte, rezasse, que nada de ruim poderia lhe acontecer. Afinal, tínhamos enorme fortuna e isso deveria valer um bom tanto. Mas não valeu. Ele não voltou mais. Minhas esperanças se foram no dia que soube da sua sentença de morte. Por três anos vivi com a morte de meu marido rondando minha cama e me tirando o sono, acompanhando-me passo a passo e me assombrando como um fantasma nos meus sonhos, nas pouquíssimas noites que conseguia dormir por alguns minutos. Não sei se senti alívio ou agonia maior quando sua pena foi revogada para degredo na África. Sabia que ele nunca mais voltaria, mesmo tendo um tempo a cumprir de exílio e depois pudesse voltar. Apesar de fazer tudo o que fiz, se outra oportunidade eu tivesse, outra vez faria o mesmo. Mostrei para o mundo que eu não era apenas aquela mulherzinha mimada que só sabia passear pelas ruas. Quando Alvarenga pensou e me falou em delatar seus companheiros para ganhar a liberdade, o perdão da rainha e a inevitável sentença que nos tornou infames, foi como se um sangue bastante quente corresse por todo o meu corpo e me impulsionasse a alma dolorida pelo impacto certo da prisão e da possibilidade da morte de meu marido. Eu escolhi a infâmia, terrível, à desonra. Não podia aceitar a covardia de meu marido e a traição aos seus companheiros. Parece que sinto suas lágrimas em minhas mãos, de medo e de vergonha diante da mulher forte que o impediu de cometer tal loucura de trair àqueles com quem se conspirou. Isso jamais. Chorou como uma criança a ficar sem resposta ante à minha decisão. Pedi que fosse, enfrentasse o processo, assumisse o que fez e continuar lutando pelo Brasil. Ele foi, sem querer, com medo, mas compreensivo diante de minha decisão. Se preciso fosse, morresse como um herói.

Ele se foi de mim, preso em São João, levado para o Rio onde aguardava a execução capital que foi convertida em degredo. E nunca mais pude vê-lo. Ficou meus filhos. E eu, sem ele e sem minha querida criança colhida na flor de sua juventude. Sobrou de mim um fantasma, uma alma ambulante em um corpo corroído pela dor que vaga nestas ruas. Praticamente nada sobrou de mim, Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira, a não ser um amontoado de lembranças vivas em um corpo morto, que ainda caminha louco, adoentado, destituída de qualquer vaidade ou vontade de continuar vivendo. Que pensem assim. A loucura seria o meu caminho natural. De mulher feliz, amada, afortunada, que sempre seguia pela praça ou pelas igrejas em minha liteira ou nos meus passeios matinais com os filhos, à essa mulher, aos trapos, sem qualquer cuidado comigo mesmo, mas com a dignidade de sempre poder estar de cabeça erguida por qualquer canto destas minas. Sou sim, a esposa de um inconfidente, sou sim a mulher que não o permitiu trair, sou sim a mulher que foi a mais feliz desta colônia. Não tenham piedade de mim pobres almas. Tenham piedade de vós que calais sobre o jugo da escravidão e sobre o peso da colonização. A loucura parece ser a única forma de sobreviver, embriagada na alma, anestesiada nas lembranças, desprovida de tudo o que fui.

Sinto tanta falta dele. Sinto as forças do meu corpo findando-se e preparando-me para o reencontro tão desejado. Estou indo meu amado. Você agora é minha estrela guia, é imaginando que você ainda está aqui que encontro forças para continuar vivendo. Sempre pensei que suportaria as dores do exílio e um dia voltaria para o seio de nossa família. Que pena meu amado, não ter sido assim. Nossos filhos amargam a vergonha de terem sido declarados infames, mas a cada dia que passa, a colônia toma consciência de sua liberdade que sei que virá brevemente. Sua morte não terá sido em vão. Será um herói. Mas queria que herói fosse do meu lado.

Aqui debaixo dessa árvore, onde todos os dias me assento para rezar pela alma daqueles que se foram, observando esse horizonte lindo, aberto, pedindo a liberdade, hoje tomo coragem, abro os versos por ele a mim escritos e me encho de coragem. São com os olhos extremamente úmidos que releio, depois de anos, a emoção transformada em letras que ele me escreveu da prisão.

“Bárbara bela, do norte estrela, que o meu destino sabe guiar...”

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 26/05/2011
Reeditado em 26/05/2011
Código do texto: T2994800
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