Uma cidade povoada de assombraçoes
As ruas da minha infância sempre foram povoadas de mitos e assombrações. Aquilo me deixava perplexo! Era rara uma rua da velha Itabira que não era um palco de uma história, um conto assombroso, um acontecimento marcante.
Conta-se que no Beco do Calvário antigamente denominado como Ladeira do Suplico, por ser o acesso principal da forca e do cemitério do cruzeiro, na calada da noite ouviam-se barulho de correntes se arrastando nas calçadas de ferro.
Era possível, nas madrugadas de segunda-feira, ver um cortejo, saindo da antiga Matriz do Rosário rumo ao cemitério do Cruzeiro. Lembro-me ter ouvido as minhas tias contando esse episódios com riqueza de detalhes. Nas segundas-feiras, a Igreja costumava dedicar a liturgia em intenção as almas. Às seis horas da manhã acontecia a celebração da primeira missa, e logo após rezava-se o oficio por intenção das almas sofridas que se encontravam no purgatório, purificando-se de seus pecados conforme a doutrina da Santa e Madre Igreja. Certa noite, uma determinada Senhora, devota incondicional das pobres almas penadas, acordou assustada, na certeza que de que estava atrasada para a missa das seis, que seria realizada na antiga Matriz do Rosário. Levantando-se rapidamente a Senhora saiu atordoada, rumo à Matriz do Rosário. Assim que chegou à Igreja, viu que a porta encontrava-se aberta, e ao entrar deparou-se com um número significativo de fieis. As velas e tochas estavam acessas, as pessoas ali presentes usavam trajes pretos e roxos. No centro da Igreja, o altar estava armado para a celebração. As toalhas pretas e roxas cobriam a uma grande urna e nas laterais queimavam velas amarelas, conforme o costume daquele ritual.
Assim que a Senhora posicionou junto àquelas pessoas sentiu um frio intenso. O silencio no interior da matriz era incrível, não se ouvia uma palavra. Todas as mulheres estavam com o rosto coberto com um véu preto e os homens e crianças todos de cabeças baixas. Nao foi possível reconhecer ninguém.
Vários padres encontravam-se ajoelhados frente ao altar principal e nos altares laterais, todos de cabeças baixas. Também havia gente na parte superior da Igreja onde normalmente fica o coral.
Tudo parecia muito estranho aos olhos daquela devota. De repente, as pessoas foram retirando do interior da igreja em duas fila. A senhora esperou a sua vez, entrou no ultimo lugar da fila e continuou observando todo aquele movimento. Assim que ela colocou os pés na escada de acesso à porta principal da Igreja, um vento forte fez a porta bater com muita força e se fechar. Por pouco seu vestido não ficou preso na porta. Então aquela Senhora começou a desconfiar do que estava acontecendo. O silêncio, a falta de diálogo entre as pessoas, os rostos encobertos, as cabeças baixas, o frio intenso, o vento forte fechando a porta, tudo isso contribui para desconfiar. Aos poucos aquele cortejo deixou o adro da matriz seguindo em direção ao Cemitério do Cruzeiro. Eis que então o relógio da matriz soa a última badalada anunciando a meia noite. O pavor tomou conta da pobre senhora que ficou por dias em estado de choque.
Outro caso que parecia real era relatado pelos os antigos da minha família. Tínhamos um tio, desses que trocava a noite pelo o dia, freqüentador assíduo das baladas das noites da velha Itabira, um mulherengo de mão cheia.
A nossa família morava na Rua de Baixo, hoje Rua dos Operários. Certa noite aconteceu um baile lá pelas bandas do Capim Cheiroso, nas proximidades do Bairro do Pará . Nosso tio permaneceu por lá até altas horas. Assim que terminou o baile, nosso tio decidiu voltar para casa .No trajeto ele acendia um cigarro atrás do outro. Em um momento a pedra do isqueiro desgastou-se e o tio queixava-se por não encontrar no caminho uma viva alma para lhe ceder fogo. Indignado começou a dizer palavrões inconvenientes. Ao chegar próximo ao portão do Cemitério São Francisco, ao lado da Igreja da Saúde, esbravejou: “Porque o diabo não me aparece para acender o meu cigarro!”. Eis que de repente, surge um homem muito bem vestido, próximo ao portão do cemitério, com um cigarro acesso. Perguntou para si mesmo - será que aquele maldito tem pelo menos fogo? O tio aproximou-se do sujeito pedindo que acendesse seu cigarro e, mais do que depressa, o pedido foi atendido. Agradeceu o sujeito.Não houve uma resposta sequer por parte do distinto. Nosso tio continuou seu trajeto em direção a rua de baixo. A certa altura, resolveu olhar para traz e viu que algo estranho o seguia. Percebeu que em sua direção vinha um homem segurando uma tocha de fogo. À medida que o homem se aproximava aquela tocha aumentava em tamanho e luminosidade. O tio saiu desembestado pela ladeira abaixo e chegando a casa entrou apressadamente, mas ainda sim, as chamas daquela tocha gigante atingiram as suas vestes . No outro dia ele foi encontrado desmaiado aos pés da escada. Foi preciso longos dias para que se recuperasse de seu encontro com o demo.
O Bairro Campestre e suas as Ruas também eram palco de histórias assombrosas. As ruas eram conhecidas como “Rua da Mulher de Tábua”, “Rua do Bode de cinco pés”, “esquina do caixão roxo” e outros nomes do gênero. Quando morria uma pessoa da vizinhança, durante várias noites não brincávamos em frente da casa do morto. Tínhamos medo de olhar para a casa do recente defunto, pois, imaginávamos que o mesmo passeava pelos arredores da casa.
Na Penha, a Rua Santana era conhecida como “rua dos horrores”, contava-se que desde seu inicio, lá na ponte do ribeirão da Penha, até a Boca da Mina, nas noites do período de quaresma, desfilava por ali a temida mula sem cabeça. Dizem que ali aconteciam espetaculares transformações de pessoas, em criaturas horríveis.
A mula sem cabeça era um animal em forma de cavalo que subia e descia a rua na calada da noite. O atrito de suas ferraduras fazia tanto barulho, que fagulhas de fogo eram arrancadas das pedras de minério de ferro da calçada. O antigo sobrado onde funcionou o Sindicato Metabase no inicio de suas atividades, foi durante muitos anos, residência de nossos parentes antigos. Os quartos e as janelas eram locais de histórias arrepiantes.
Contava-se que um morador antigo, descendente de judeus que residiu no porão do sobrado durante anos, nas noites de lua cheia transformava-se em um animal assustador. Meu avô materno quando menino, quase morreu de susto e medo do tal bicho. Certo dia questionou o judeu: - “andam dizendo por ai, que o Senhor se transforma em um animal horrível nas noites de lua cheia, mas não acredito na história”. E o judeu respondeu: - “não brinca comigo menino!” Certa noite tudo aquilo se tornou realidade. Dindinha, que era a nossa bisavó, passou a noite em claro, rezando o terço e muitas outras orações para que aquela coisa horrenda desaparecesse da escadaria principal do sobrado. Dizem que o terço arrebentou e suas contas espalharam por toda casa. Gritos horríveis foram ouvidos durante toda a madrugada. Diversos vizinhos foram testemunhas do tal acontecimento. Vovô tremia como vara verde. No outro dia, vestígios da tal criatura foram encontrados na escada.
Na boca da noite, no aconchego da cozinha, à beira de um fogão de lenha, religiosamente, nossa família se reunia. Todos os dias era o mesmo ritual, nossa mãe, nosso pai, avós, tias, tios, outros parentes e vizinhos sempre tinham história da nossa velha Itabira a contar. Íamos para a cama assustados com os causos.
Mas havia a certeza de que alguém velava pelo nosso sono, nos protegendo. Era o nosso Anjo. Cada um tinha o seu. Em nossas camas, recitávamos em alta voz: - “Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador, Deus a ti nos confiou”.
Bença Mãe, Bença Pai... Com Deus passa a noite...
A resposta era imediata.
Aquela voz suave era ouvida por toda a casa.
Deus os abençoa meus filhos!
Aquilo nos acalentava e dormíamos tranqüilos com um sorriso de paz em nossos lábios.