Depois do Chute

Às uma os roqueirinhos filhinhos de papai saem do estúdio e ficam fazendo algazarra na porta do estúdio que fica em frente. Às duas tem as brigas de mendigo; barulho de garrafas se espatifando em paredes e de portas de metal cedendo a corpos jogados. Às três começam os estupros, assaltos, assassinatos e as brigas de gatos. Às quatro os ônibus estúpidos começam a rodar. A droga do ponto de ônibus é imediatamente sob a minha janela. Às cinco é o galo que o dono do apartamento tem. Às seis parece não haver nada além dos pombos transões que ficam na janela. Às sete eu fico impaciente demais e saio da cama, miseravelmente cansado - inclusive da vida. Olho pela fresta da janela de madeira, às oito, e vejo os comerciantes abrindo suas portas: a loja de R$1,99, a oficina mecânica, o mercadinho dos coreanos e a lojinha de roupas femininas. Às nove ela chega. Vendedora da loja, detentora de uma anca que sempre me coloca em conjeturas confusas; a mais presente (das conjeturas) é que se uma caneta for jogada em direção a tamanho hemisfério glúteo, a própria entra em órbita - ao redor da bunda, caso eu não tenha sido claro. Será que isso é possível? Fico até às dez colado à janela. A rotina dela é a mesma: chega, fica dez minutos dentro da loja e depois sai, pra varrer ou passar uma mangueira na calçada. Sempre com a calça legging do uniforme, parecendo boa demais pra qualquer um. Minha mão vai e vem, naquele movimento unilateral bem conhecido. Um salve, Onan! Às onze me jogo na cama, entediado, morrendo de sono e não conseguindo dormir. É aí que começa aquela profusão de pensamentos sobre a vida ser um grande Nada que só dá em Morte. Fico olhando pro teto, orando para que ele desabe e ponha um fim rápido em tudo isso. Mas ele não vai ceder. Morrerei com 90 anos e essa porra de teto continuará aqui. Nasci no lugar errado. Todo esse potencial pra homem-bomba no país do bundalelê. Bife no fogo e a panela em cima. Dentes-de-leão querendo inverter a rotação de ciclones. Bem-me-quer-mal-me-quer com a vida, que mal-me-quis; que bem-quis que eu me arruinasse sem ter a mínima autocomiseração; ser assim, vazio, sem se importar e só esperar o Grande Dia de habitar a tumba. Meio-dia. Sol besta, lá em cima, no centro: por que não cai? Piche borbulhando, pneus estourando, ar irrespirável, autocombustão até nesta folha que escrevo (sem saber usar crases e ênclises); o tubo da caneta derretendo e colando na minha pele; hemorróidas explodindo; globos oculares escorrendo pelas maçãs do rosto; um lindo festival de horror. Imagina se ele faria essa, egocêntrico do jeito que é... Abestalhado que tem sorte de estar longe! Sorte, senão estaria lascado, como tudo o que pudemos/podemos tocar. E até o que não podemos tocar. Fica aí, brilhando, aquecendo quem merece cair eternamente de um penhasco no Umbral; bestão, sem emolumentos: só emolumentos, por nada. Teto. Teias nas quinas. Lâmpada queimada há semanas. Espelhos, nem pensar. Solidão. Um oceano, esta minha cama. Grãozinho de areia, nela, eu. Um muxoxo, um ricto de pseudoinquietude, uma rolada pro outro lado, estraladas de falangetas, bocejos. Tic-tac. Meio dia. Sem meia. Pés frios do meio-dia. Enfim, durmo. Durmo. Durmo, com o sonho de não acordar.

The Draft - Bordering

24/05/2011 - 23h49m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 25/05/2011
Reeditado em 25/05/2011
Código do texto: T2991487
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