VOCAÇÃO, DOM, TALENTO?

Quando eu era menino (já contei esta história), minha primeira professora foi minha mãe. Embora vindo para Mossoró de uma vila do sertão do Ceará e só tivesse o curso primário, era uma mulher inteligente e tinha, sobretudo, uma facilidade para cálculos, como se dizia, “de cabeça”, ou seja, mental, que causava admiração. Se, por exemplo, alguém queria saber o resultado de 9 vezes 16, ela pensava um pouquinho e respondia: é tanto. Também gostava muito de ler: jornais, revistas, folhetos que chegavam ao seu alcance, ela os lia todos, após o almoço (retrocedo a memória a muitos anos e a revejo sentada na espreguiçadeira, às vezes até com lágrimas nos olhos). Lembro muito bem que recebia, ou tomava emprestados não sei de quem, os romances em folhetins que se publicavam naquele tempo: A Princesa Mendiga, A Toutinegra do Moinho, A Cabana do Pai Tomaz, O Moço Loiro, e outros que circulavam então.

Não sei se foi do mesmo modo com Zé Augusto, meu saudoso irmão, que nasceu quase dez anos antes de mim - e serviu para mim, além do meu pai, como paradigma de vida - mas foi assim comigo: mandou comprar uma Tabuada, uma Cartilha de ABC, algumas folhas de papel pautado, um lápis e uma borracha. E, em um certo dia, as aulas começaram (nunca esqueci o carinho com que as ministrava: primeiro, foi aprender as letras do alfabeto, as maiúsculas e as minúsculas, depois, a formação das sílabas: um B com A, B-A BA, um C com A, C-A CA, e assim por diante). No outro dia, era a Tabuada: conhecer os números, aprender a contá-los, depois a somá-los: 1 mais 1 = 2; 2 mais 1 =3, até virem as contas de diminuir, multiplicar e dividir.

Em pouco tempo, já estava começando até a ler pequenas histórias infantis. De modo que, quando fui para a escola particular de Dona Candinha, na mesma rua, eu era o aluno melhor preparado. Naquele tempo havia palmatória e sabatina a cada sábado: a professora reunia os alunos em torno de si (acho que eram uns doze, meninos e meninas) e se sentava no centro. Fazia a primeira pergunta a cada um; mas, se logo o primeiro soubesse responder, mudava a questão. Entretanto, à maioria das perguntas só eu sabia responder. Então, Dona Candinha me passava a palmatória e eu saía, com certo constrangimento, mas feliz, a castigar todos os que não haviam respondido, em alguns com mais, em outros com menos força, mas nas meninas batia levemente. Havia, porém, um – Severino Babão (digo o nome porque ninguém mais se lembra dele), por quem sentia uma inexplicável antipatia, em quem sempre batia com a força de que dispunha.

Bom, o tempo foi passando. Fui para o Grupo Escolar 30 de Setembro - escola pública, naquele tempo muito boa. Na época existia um livro “Histórias Potiguares”, que era excelente. Tomei gosto pela leitura. Lá em casa – já disse isso certa vez, mas sou um tanto repetitivo - existia um livro de Mitologia cuja leitura me fascinou. Já no Ginásio Diocesano Santa Luzia, dedicava um tempo ao estudo (nunca fui um ótimo aluno, poucas vezes ganhava um 10, embora raras vezes abaixo de 5; só as minhas notas de História e de Português eram razoáveis), e boa parte da noite passava lendo também romances, principalmente os da antiga coleção “Terramarear”. Mais tarde foi que comecei a ler os grandes romances...

Concluído o ginasial em dezembro de 1942, logo em 1943 surgiu um concurso para o Banco do Brasil. Inscrevi-me, fui aprovado e tomei posse em 19.11.1943; foi a data mais importante da minha vida. Disse, em excelente crônica, a notável escritora Clarice Lispector, que as três paixões de sua vida foram: amar as pessoas, ter filhos e escrever. Bom, eu não sei se amo assim as pessoas, generalizadamente, mas amei muito os meus saudosos pais, os meus irmãos, amo demais a esposa que Deus me deu, amo de todo o coração os meus onze filhos (era um dos meus sonhos possuir uma família grande), os meus dezessete netos e os meus sete bisnetos. Gosto muito dos meus genros e noras e também tenho um apreço especial pelos meus bons amigos, de qualquer classe, ricos ou pobres.

Quanto a escrever, também era uma obsessão, porém contida por vários fatores, um deles a timidez. Gostava muito de fazer cartas aos colegas transferidos para outras cidades, aos amigos e parentes. Ainda hoje guardo duas pastas cheias de cópias e originais dessa correspondência, algumas com mais de 60 anos; o que é que vou fazer (ou farão) delas? Embora gostasse muito de ler romances e contos, varando as noites sob a recriminação dos meus pais pelo exagero, tinha uma predileção particular pelos poetas: Casimiro de Abreu, “Deus”- que era a que mais recitava no dia de declamação no Grupo Escolar; Olavo Bilac (“Ora – direis – ouvir estrelas! Certo perdeste o senso!”.../Pois só quem ama pode ter ouvido/ Capaz de ouvir e de entender estrelas”); Castro Alves, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Luiz Guimarães Junior (“Visita à Casa Paterna”) e vários outros.

Foi devido a uma carta dirigida ao cientista e Prof. Vingt-un Rosado, criador e dirigente da “Fundação Cultural Vingt-un Rosado” que escrevi – mais por sua insistência e estímulo – o meu primeiro livro, “Minhas Lembranças de Mossoró”. Dado esse pontapé, e como havia trabalhado trinta anos na agência do Banco do Brasil, em Mossoró, decidi escrever sua história, ilustrada, desde a fundação em 02.12.1918 até 1998, 80 anos, portanto, o que me custou muito trabalho de pesquisa. A esse, seguiram-se mais sete livros, o oitavo, que foi “Crônicas Anacrônicas” (2007), publicado como o último que faria. Isso, eu não o fiz por possuir o DOM, ou mesmo por VOCAÇÃO, sequer TALENTO, mas obedecendo a uma espécie de impulsão de contar, partilhar com alguém as minhas recordações, os meus sentimentos e, mesmo, para revelar, como uma modesta contribuição para a história de Mossoró, muitos episódios e figuras que guardo na minha memória antiga.

Assim, provavelmente o oitavo não continue sendo o último, pois tenho, já, bastante material para publicar mais um, que seria uma espécie de miscelânea composta de algumas poesias, alguns contos, várias crônicas e diversos artigos sobre a Mossoró do passado. Com esta idade e muitas limitações não sei por que prossigo escrevendo. Não é, conforme disse, dom, nem vocação; é uma espécie de – repito - impulsão. Não o faço para aparecer ou por tirar algum proveito financeiro; suponho que já é quase um vício, uma ousadia. E, como parece que já conquistei alguns poucos leitores, talvez ainda persevere nessa mania. Não sei até quando; Deus é quem sabe.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 24/05/2011
Reeditado em 25/05/2011
Código do texto: T2990354