REMEMORANDO
Depois de ter dado uma palestra aos alunos da terceira série, serie, sobre poesia, senti dentro de mim uma avalanche de lembranças que teimavam em vir à luz, impulsionando-me a registrá-las, com uma sensação de urgência nunca antes percebida.
De repente era imperativo que eu voltasse o mais breve possível para casa. Mal chegando, tomei um rápido banho, preparei um lanche frio, desliguei o telefone e acomodei-me em frente ao computador.
E, despindo a couraça que sempre conservava e ocultava de todos e até de mim mesma, com a qual pensava me proteger, deixei as lembranças fluírem:
Lembrei-me de que minha irmã me havia contado que um dia, quando eu era ainda um bebê de poucas semanas, ela foi trocar minha fralda e não conseguiu, vindo a me derrubar da cama.
Mamãe ficou tão furiosa com a pobre, que em vez de me pegar do chão, queria bater nela, que se escondera debaixo da cama.
Pobre criança tinha apenas seis anos e meio e já era obrigada a cuidar de outra criança.
As poucas lembranças que tenho de minha infância são de mamãe trabalhando muito no velho armazém construído de madeira, enorme aos meus olhos de criança, com uma escada que seguia até o sótão.
Ali era meu refugio, embora muitas vezes sentisse medo daquele lugar, que parecia ser mal assombrado. Era cheio de poeira. O teto era inclinado acompanhando o telhado de maneira que as paredes laterais eram bem mais baixas que o centro.
No velho sótão escuro também havia muitas teias de aranha. E eu, na minha inocência, achava que ali também viviam as bruxas, “pois onde tem teias de aranha é que elas vivem”, era o que eu sempre ouvia dos adultos.
Havia também ruídos estranhos, causados não só pela madeira que estalava de vez em quando, castigadas pelo calor do sol, mas pela presença de alguns moradores mais exóticos: lagartixas, ratos e até uma cobra verde que ali residia.
Eu tinha uma estranha relação com aquele local: sentia medo de coisas sobrenaturais, mas quando o medo real me acometia, subia aquelas escadas e ali buscava refúgio.
Ficava lá em cima, observando através da janela, também feita de madeira e com uma tramela (trava) as pessoas que transitavam pela rua.
Era interessante poder olhar de cima, pois dava à impressão de que eu era maior que todos. Sentia-me grande, importante. Coisas de criança...
Também tinha outro lugar onde costumava me esconder, era debaixo dos degraus da escada, um cubículo tão pequeno e espremido, onde minha mãe guardava o escovão e colocava alguns sacos de roupas velhas. Sentia segurança lá.
Na minha meninice, a cidade onde eu morava não possuía ruas asfaltadas e a poeira vermelha invadia tudo, principalmente quando havia ventania.
Recordo-me dos enormes redemoinhos que surgiam em forma de cone invertido e sugavam para seu interior folhas, papéis e pequenos objetos. Era crença popular que no seu interior havia um Saci pequenino que, se fosse capturado com uma peneira, se tornaria escavo de seu captor e realizaria todos os seus desejos.
Eu morria de medo e imaginava o Saci como um negrinho de olho vermelho, com uma perna só, usando um gorrinho também vermelho na cabeça. Não usava camisa, apenas se vestia com uma tanga, igual a dos índios e fumava um baita cachimbo parecido com àqueles que os libaneses da cidade fumavam.
Diziam que ele era muito mau e que fazia muitas travessuras, puxava rabos de gatos e cachorros só para vê-los gritar, dava estilingada nos olhos dos porcos, fazia nós nas crinas dos cavalos. Daí saia pulando, com uma perna só, dando gargalhadas e soltando fumaça do seu cachimbo.
Com mais medo eu ficava quando minha irmã, que era meio endiabrada pegava uma peneira e se metia no meio do redemoinho, esperançosa de conseguir prender um Saci. Coitada, nunca conseguiu o seu pequeno escravo, mas em compensação, voltava para casa quase igual a um só que vermelha da poeira que a cobria toda, e mais vermelha ficava depois de levar umas boas varadas da nossa mãe.
Essas são apenas algumas lembranças de minha infância.