Mundano

Nasceu de um sistema violado. Foi criado em um mar de ilusões, onde tudo o que tocava virava pó. Cresceu em meio ao absurdo, rodeado de paixões acabadas, sentimentos pisoteados. Sua mãe o odiava por ter nascido. Por provir de uma fonte seca de amor. O pai, religioso, criticava sua postura diante às pessoas. Não trazia ninguém para casa. Não se sentia livre para amar. Trabalhou seus sentimentos sem maestria, moldando-os em estruturas quebradiças. Nunca soube se relacionar adequadamente. Nunca soube como se comunicar. Na escola tinha dificuldades com letras e números. Alguns diziam que era doente ou que possuía o coração de ferro, mas somente não sabia sentir. Nunca aprendera. Era caçoado nas ruas, vivia andando pelos cantos. Sentia-se distante e ao mesmo tempo pertencente a uma classe destinada aos fracassados.

Trabalhar nunca foi um problema. Era livre para ir e vir, desde que cumprisse as metas. Obedecia quando era preciso; abaixava a cabeça quando necessário. Tinha alguns amigos, conhecidos e pessoas que o admiravam pela competência. Era criativo, exigia de si comente o máximo. Apesar de tudo, vivia na alegria. Conseguia enxergar a beleza nas pequenas coisas. Aproveitava cada minuto de esperança antes que os cantos voltassem a chamá-lo. Não encontrou o amor. Conviveu com pessoas de bem, mas que sentiam pena do pobre homem.

Saiu de casa aos 25 anos para viver nas ruas, onde foi bem recebido pelos postes e praças. Conheceu pessoas diferentes, sensações nunca experimentadas, luzes e cores que o maravilharam. Às vezes sentia que estava sendo perseguido; via olhos na escuridão e vozes o chamavam pelo nome. Mandavam-no fazer coisas que não queria realizar. Cometeu delitos, sofreu com o frio, sentiu o calor na pele exposta. Sua barba cresceu. Seus pés calejaram. Alimentou-se com os cães, seus amigos, nos cantos tão conhecidos por ambas as espécies. Dormiu em um colchão furado que os homens descartaram. As noites eram solitárias, os dias escaldantes. Aprendeu a cantar canções desconhecidas, utilizando-se de suas próprias melodias. Por onde passava era olhado pelos cantos, mas já não ligava.

Com o tempo aprendeu a observar os humanos. Via as senhoras jogando jantares na lata de lixo. Comida não faltava em sua mesa. Usou sapatos caros com pequenos furos, também descartados. Vestiu camisetas, lindas, coloridas e com palavras escritas. Nunca soube ler, mas admirava as letras e palavras. Suas formas o agradavam. Percebia como o mundo era pequeno, como tudo era passageiro. Aprendeu que um dia a carne volta à terra, e que choravam por ela. As pessoas vestiam o preto, mas ele não as entendia. Cantarolava sua música comemorando o prêmio dado à natureza nos dias de velório. Sentia-se livre.

Compreendeu que a vida era uma coisa engraçada, que em um dia era boa e em outro era ruim. De seus pais nunca mais ouvir falar. Passou em frente sua velha casa e viu que haviam pintado o portão, mas o muro ainda continuava lá, do mesmo jeito que estava quando saiu. Percorria as ruas trôpego e embebido em substâncias oferecidas por estranhos, os mesmos que um dia choraram pela carne despedaçada. As vozes não paravam de chamá-lo. Às vezes ouvia e obedecia ao que diziam, mas nunca estava pronto para fazê-lo. Voltou a ver os olhos na escuridão, a sentir que era perseguido. Corria sem parar, sem rumo, a procura de algo que nem mesmo sabia se iria encontrar.

Viu carros e caminhões passarem por cima de pessoas. Percebeu que as cores que mais gostava eram o preto e o vermelho. Achava lindo o azul do céu, mas quando a água caía do mar cinzento lá de cima, sentia-se mais feliz. Os pingos daquele líquido doce faziam a dor sumir, a mente voltar ao normal. Nesses dias as vozes sumiam e os olhos se apagavam. As árvores se mexiam, o barulho do tráfego cessava. Tudo o que ouvia eram os sons da melodia que a natureza proporcionava. Sentia-se aliviado por não ver os estranhos chorando, gritando e se atacando. Cantava suas músicas com fervor, acompanhando o ritmo da vida. Passou a sentir que alguém finalmente caminhava ao seu lado. Não se sentia mais sozinho. Seus anos tenros se perderam no tempo, sumiram de sua mente. Não se lembrava mais de quem foram seus pais, de como sua vida era antes de conhecer sua nova casa.

Olhou para o céu e viu que era dia de chuva. Esperou ansioso pelo primeiro pingo de alegria. Em sua mesa se alimentou, bebeu da água suja que seus cães encontraram. Sentou-se em seu poste preferido, onde mantinha seu colchão furado e seu par de sapatos. Vestiu sua melhor camiseta colorida, estampada com as cores de que mais gostava. Abraçou-se em um travesseiro colorido e esperou. Esperou pelo dia em que iria também ser entregue à terra, onde ninguém choraria por ele. Ninguém vestiria o preto por ele. Ninguém arrumaria seu cabelo ou faria sua barba. Mas preferia assim. Queria que o canto da natureza o levasse para onde as coisas terminavam. Queria conhecer o que tinha depois daquele mundo engraçado, onde não teriam pessoas nem desperdícios.

A chuva veio, as gotas o satisfizeram, e então, finalmente encontrou o fim. Feliz.